Criolo, ou Explicando Gíria

Estúdio Emme . 6.9.11

POR Mateus Potumati publicado em 20.09.2011

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Meses depois do lançamento de Nó Na Orelha, um dos discos-sensação de 2011, finalmente consegui ir a um show do Criolo pós-Doido. Este texto era para ser um review desse show (leia-se: da música tocada durante a apresentação), mas o assunto foi atropelado por aquela palavrinha fácil que começa com um H, é seguida por um Y maroto, depois um P e um E. Eu realmente gostaria de evitar esse assunto, porque na minha opinião o “hype Criolo” escancarou o baixo nível geral da crítica musical brasileira (saiba mais a respeito do Daniel Ganjaman e do Dafne Sampaio), e muitíssimo pouca gente na imprensa tem discutido o tema para além dessa groselha toda. Mas, enfim, se beber da groselha é inevitável, prometo ao menos arrotar alguma discussão musical nas linhas abaixo.

Se você, como eu, não vê um show do Criolo ao vivo em SP desde os idos de 2006, a primeira impressão ao chegar na porta do Estúdio Emme pode surpreender – mesmo que, como eu, você também esteja acompanhando atento o meteórico desenrolar da carreira do ponta-de- lança do Grajaú. Estimando por baixo, 90% dos presentes não tinham nada do “típico público de rap” – e não falo aqui só do estereótipo calça-larga-bombeta-e-moletom que , mas do mix rap/indie/ descolado/hipster que tem lotado shows de Emicida, Flora Matos, Kamau, Cone Crew e outros nomes do rap atual desde 2008/9. Porém, ao contrário do que dizem preguiçosamente (e, óbvio, perversamente) alguns jornalistas, não se trata apenas de um público “rap publicitário”. É curioso, aliás, que esse termo seja usado pejorativamente, como se a maioria absoluta dos jornalistas pudesse dizer algo contra qualquer publicitário. Certamente havia ali integrantes da dita “economia criativa”, mas também colaram tipos como mangueboys, indies e roqueiros em geral, o povo da MPB/Studio SP, o alternativo médio de baladas da Vila Madalena, alguns playboys e patys, e O Rap. O mais curioso, ou talvez não, é que não vi circulando por ali nenhum jornalista dentre os que denunciam Criolo como farsa – e se tratava nada menos do que da noite de lançamento de “Subirusdoistiozin”, clipe favorito na disputa do VMB 2011.



ENFIM. Descontada a falta de rigor na amostragem, essa sociografia de olhômetro é suficiente para comprovar que o fenômeno Criolo conquistou, em um curtíssimo espaço de tempo, um público novo e alheio ao ambiente do rap. Isso, a meu ver, é fruto de três coisas:

1) O encontro entre ele e Daniel Ganjaman (que teria conhecido o trabalho do Criolo neste texto, publicado na Soma 14). A parceria permitiu ao primeiro finalmente planejar uma carreira mais estável (depois de ralar 20 anos pelo rap de SP) e dar plena vazão à vontade de explorar novos ares musicais, já esboçada por ele no disco Ainda Há Tempo, de 2006 (“Aprendiz”, daquela época, dá um pau em muita música da indie MPB atual, seja pela composição, seja pela produção lo-fi). Mais bem arranjadas e gravadas, essas faixas acabaram atingindo pessoas que pouco ou nada se interessariam por rap. Encontrei Criolo em novembro de 2010 e me lembro da empolgação dele ao me mostrar, à capela, algumas das ideias que vinha tendo para o disco novo (engraçado imaginar como, há menos de um ano, a situação atual pareceria completamente surreal).

2) A consideração MONSTRO que Criolo tem no meio hip-hop. Boiando no rio de groselha, uma das piores bravatas é a de que Criolo “não tem legitimidade no rap” (particularmente, gosto também de um outro texto que disse que “Criolo está democratizando o rap no país”, como se Sampa Crew, Racionais MCs, MV Bill e outros fossem nomes do rap argentino). Trata-se daquelas presunções que falam mais sobre autor do que sobre objeto. À frente da Rinha dos MCs, Criolo Doido exerceu um papel central na renovação do rap de SP, que viveu períodos de baixa criativa no meio da década. E, longe de se resumir a agitador cultural, ele fez história também em cima dos palcos (vide o DVD ao vivo que ele gravou por lá). Em 2006, Criolo Doido soltou o já citado Ainda Há Tempo, com hits das rinhas como “É O Teste” (que, aliás, fala quase premonitoriamente sobre o que o rapper vive hoje) e “Demorô”, além de “Chuva Ácida”, um dos melhores raps feitos no Brasil desde então. Quase tudo isso tá na Wikipédia, mas parece que nem ali a galera tem entrado antes de escrever.
 
3) Um triunfo – histórico, eu diria – de assessoria de imprensa, essa profissão incompreendida até por quem trabalha nela, que soube contornar as fragilidades de uma mídia neófita no tema (quando não abertamente tacanha e preconceituosa) para vender, se não gato por lebre, lobo como cordeiro. O “Criolo Paz e Amor” propagado pela imprensona é apenas a versão 2011 de um argumento secular, necessário para burlar a resistência da elite brasileira em aceitar artistas negros que não pareçam amistosos/inofensivos/divertidos. Isso gera situações impagáveis, como ver moças de família dançando felizes ao som de “Bogotá” sem se ligarem do que a letra fala (Criolo, infelizmente, só tem a dizer: "Fia, eu odeio explicar gíria").

O que nos leva a outra pergunta feita com frequência atualmente: o som do Criolo é rap, como inegavelmente o era Criolo Doido? É uma pergunta complexa, como é complexa e intuitiva qualquer leitura da história enquanto ela está acontecendo. Porque Criolo, de fato, faz parte de um pequeno grupo de MCs que, ao longo da história do gênero, explora os limites das levadas tradicionais de rap. Para ficar em apenas dois exemplos recentes, Kanye West e Sabotage perseguiram, à sua maneira, o mesmo objetivo. No caso de Kanye, trata-se de uma obsessão frustrada, já que ele próprio admitiu não saber cantar. Com sua folclórica megalomania, ele chegou a dizer que é isso que o impede de “ser o maior artista de todos os tempos”. Ainda que a música de Criolo seja conservadora em comparação à brilhante vanguarda pop do estadunidense, o brasileiro é um cantor imensamente superior. Já o caminho que Sabotage perseguia depois de O Rap é Compromisso, interrompido por sua morte prematura (mas registrado em músicas como “Dama Tereza” e “Cabeça de Nego”, da coletânea Coleção Nacional, do Instituto), é em grande parte semelhante ao de Criolo, ainda que com resultados diferentes: uma aproximação mais efetiva, em termos formais, entre o rap e a música brasileira. Como Sabotage, Criolo se descobriu capaz de cantar, e com isso compôs raps que transcendem a levada quase falada, característica do estilo. É um caminho inverso ao tentado, por exemplo, pelo canto falado do grupo Rumo de Luiz Tatit nos anos 1980, mas com objetivo parecido: testar os limites da área de intersecção entre a fala (ou, no caso de Criolo, o rap) e o canto. No caso do Rumo, tratava-se de mostrar que o canto era derivado da fala, por meio de vocais pensados para se aproximarem o máximo possível da língua falada, sem deixarem de ser canto. Criolo, ao contrário, ora constrói levadas rap que se aproximam do canto (“Subirusdoistiozin” sendo o exemplo mais bem acabado disso), ora extrapola os limites da fala em direções mais abertamente cancionais (“Não Existe Amor em SP” e “Bogotá”, por exemplo). Não sei se o faz de propósito, como Tatit, ou se é algo espontâneo. Mas ele certamente gosta de compor nessa área mista.



A questão que alguns têm dificuldade em enxergar, porém, é que Criolo é inapelavelmente rap. Todas as letras de Nó Na Orelha, e mesmo a forma como ele constrói e encaixa o vocal nos versos, têm influência direta do rap. “Não Existe Amor em SP” carrega a visão crua e distópica de raps como “Negro Drama”, com métricas e encaixes vocais que, em uma audição mais detida, soam diferentes do que seria um vocal comum de canção, ora se estendendo por mais tempo, ora pela repetição monotônica da melodia. “Bogotá”, apesar da embalagem afro- beat, é uma letra sobre o tráfico e o consumo de drogas, com o abuso de gírias típico do rap (o que provavelmente é a razão por que muita gente não percebe do que a música fala).

Ao vivo, ao contrário do que eu pensava, essa distinção não fica diluída. Por causa do supergrupo montado por Ganjaman (que tem feras como Kiko Dinucci, Thiago França, Marcelo Cabral e Maurício Bade), imaginei que a “parte melódica” poderia se sobrepor à “parte “rap”, mas em “Subirusdoistiozin”, “Lion Man” e “Sucrilhos” a banda é propulsora do Criolo MC, que está totalmente à vontade. “Bogotá” soa mais como uma simbiose entre ambos (e o público), produzindo um dos momentos de maior catarse no show. Aliás, como show de rap, a performance de banda e MC é algo raramente visto na história do gênero no Brasil, seja em termos de qualidade de execução ou de fidelidade em relação ao disco. Mesmo faixas com letras e instrumentais menos inspirados como “Samba Sambei” e “Linha de Frente” provam seu valor ao vivo como hits de pista. O reggae da primeira e o sambinha-rock da segunda (além do bolero-brega “Freguês da Meia-Noite”) são interlúdios mais calmos, mas ainda assim muito dançantes,  perfeitos para equilibrar um setlist de resto altamente emocional, executado com vigor e sangue nos olhos. É um show que tem muito a ensinar a MCs e DJs do país inteiro.

O que parece se abrir à frente de Criolo, pois, é a possibilidade de transpor a visão de mundo e a estética do rap brasileiro em direção a outros gêneros, com possibilidades inéditas. Se o ingresso em um mundo musical distinto ao estilo, ainda que amigável a ele, vai diluir o rap em Criolo e fazer dele apenas um bom vocalista para a banda de Daniel Ganjaman, é impossível saber agora. Independentemente disso, faixas como as citadas acima (e mais “Lion Man” e “Grajauex”) já concretizaram um passo gigantesco ao gênero, que certamente ainda será discutido por anos.

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 criolo, estúdio emme

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