No salão do cinema, os convidados para a cabine de “Daquele Instante em Diante”, primeiro filme dedicado à obra de Itamar Assumpção, se dividiam entre trocar olhares resignados e fazer qualquer coisa para passar o tempo. Por um capricho do projetor, o início da sessão estava atrasado em quase duas horas. Quando a questão técnica enfim foi resolvida, Luiz Chagas, guitarrista da primeira formação da banda Isca de Polícia, se levantou, expressão de alívio no rosto. Comentei que nada a envolver Itamar jamais havia sido fácil. Ele sorriu e comentou, perplexo: “Parece brincadeira, né, bicho?”
Em todo o curso de seus pouco mais de 20 anos de carreira, a palavra “fácil” raramente foi usada em relação a Itamar Assumpção. Dos anos de teatro em Londrina à dramática luta contra o câncer que o levou em 2003, a vida do artista foi marcada por um ímpeto incansável em não fazer concessões de qualquer natureza – e não se fala aqui apenas de generalizações como “fazer músicas comerciais”, mas de práticas correntes e aceitas por autores de respeito, como a simples presença de um produtor musical ou negociar direitos fonográficos nos termos de uma gravadora. Essa e outras características famosas na personalidade de Itamar – em iguais doses controlador, perfeccionista, prolífico, angustiado, ácido e absolutamente genial – são exploradas com rigor e imersão inéditas nos 110 minutos da aguardada biografia dirigida por Rogério Velloso.
A grande novidade do filme nesse sentido, porém, é apresentar um lado de Itamar Assumpção até então desconhecido do público (modesto, mas extremamente fiel) que o acompanhou: o homem de família, extremamente dedicado, que cultivava orquídeas e mandava cartas às filhas e à mulher sempre que viajava. Por meio de depoimentos da família e de artistas mais próximos, Velloso contrapõe os dois mundos em que Itamar vivia: a loucura urbana do centro de São Paulo, com uma rotina de trabalho incansável e noites alucinadas, e a vida quase bucólica, típica do interior, que ele levava na Penha, Zona Leste da cidade. Nessa simbiose com a capital paulista, ficam evidentes as contradições que o artista vivia – é impossível não lembrar dos versos de “Persigo São Paulo”, lançada no álbum póstumo “Pretobrás III”, de 2010: “São Paulo é uma outra coisa / não é amor exatamente / é identificação absoluta / Sou eu / Eu não me amo, mas me persigo / Eu persigo São Paulo”. Aqui, exerce papel fundamental o caráter de intimidade e informalidade exposto nas entrevistas, reforçado pela opção de Velloso por uma câmera mais solta, com enquadramentos e focos pouco convencionais para esse tipo de filme, e por elementos de narrativa visual recorrentes – boa parte dos depoimentos foi gravada na cozinha dos entrevistados, com xícaras de café e alimentos sempre à mostra, por exemplo.
Na parte musical, “Daquele Instante...” é ainda mais desbravador. Em um trabalho que consumiu mais de dois anos, Velloso, a produtora Carol Dantas e a equipe do Itaú Cultural (que financia o filme, como parte da série “Iconoclássicos”) realizaram uma pesquisa de imagens profunda e abrangente, que vasculhou o acervo das TVs Globo, Cultura e Bandeirantes, além de particulares e do próprio Itaú Cultural. O conjunto reunido contém preciosidades nunca divulgadas, como shows da Isca de Polícia no começo dos anos 1980 na TV Bandeirantes e no mítico teatro Lira Paulistana. As imagens mostram o vigor explosivo de um conjunto no auge da criatividade e ousadia, cuja mistura de MPB, reggae, rock e funk não teve paralelos na história da música brasileira. “Pra mim, aquilo ali é Rolling Stones”, chega a dizer um fã, fazendo referência ao quarteto original da Isca de Polícia: o genial baterista Gigante Brazil, morto em 2008, o baixista Paulo Lepetit, fiel escudeiro de Itamar, Luiz Chagas e Itamar Assumpção. A comparação, ainda que um tanto redutora musicalmente e injusta quanto ao papel das vocalistas Suzana Salles, Virgínia Rosa e Vânia Bastos, exemplifica o entusiasmo que a Isca de Polícia gerava no público roqueiro que crescia no país. Nas apresentações, no entusiasmo dos apresentadores e nos recortes de jornais da época, a sensação é a de que Itamar Assumpção, por um breve momento, teve público e mídia na mão. O próprio Chagas admite ter pensado que “ficaria rico” após um show com casa lotada, sem suspeitar que, em poucos anos, a explosão do rock nacional absorveria esse público e passaria como um trator por trabalhos mais exigentes como o de Itamar e do parceiro Arrigo Barnabé.
Aliás, se há algo que o filme de Velloso ajuda a desmistificar é a ideia difundida em certos segmentos de que seus discos nunca foram populares porque eram “difíceis”. Seja nos anos da Isca de Polícia ou no trabalho posterior como compositor, Itamar Assumpção produziu uma obra de toque inegavelmente popular, que empolga na mesma medida que corta até o osso. “É como se, para chegar até as pessoas, eu precisasse evitar ser popular”, ele diz, em uma das suas muitas declarações emblemáticas. Em outra, ele complementa: “As pessoas me perguntam quando eu vou fazer sucesso. Eu faço sucesso o tempo todo”. Marcadas por seu humor implacável e transparência rasgante, declarações como essas nunca passam batidas pelo espectador, como sua música. Quando fala sobre Arrigo, ele revela pontos importantes sobre seu próprio estilo de composição: “Eu percebi que um negão metido a compositor como eu tinha que entender aquele tal de Arrigo Barnabé. O samba e a música brasileira eram naturais em mim, as outras coisas eu tive que estudar: atonalismo, música contemporânea etc.” Em outro trecho, falando com Antônio Abujamra, ele complementa: “Às vezes as pessoas falam ‘Ah, o Arrigo é chato’. Chato é você, que não entende o que tá acontecendo ali!” Ele também não mede palavras ao falar de cânones da MPB: “Será que a música brasileira vai ser sempre Caetano e Gil?”, ele pergunta em um trecho. Ao fundo, ouvem-se os versos “Ser carioca e baiano/ Por que que eu não pensei nisso antes?” (é de outro verso dessa mesma música, por sinal, que saiu o título do filme). Há um gosto amargo em constatar que declarações com esse peso não tenham repercutido como poderiam na época, e principalmente que a fome do artista por conhecimento e pela renovação da música pop/popular praticamente não tenha encontrado eco, seja na MPB, que depois dele pouco fez além de festejar sua própria história, seja no rock, mais preocupado em emular ídolos anglo-saxões.
Independência forçada?
Obviamente, nem tudo foi “culpa do mercado”. Itamar, em certa medida, optou por ser independente (9 dos seus 12 discos foram lançados por ele próprio ou por selos pequenos). Queria ser reconhecido como artista popular, mas não queria ou não conseguia jogar o jogo, numa época em que a ideia de música independente fazia pouco ou nenhum sentido. O assunto é abordado por vários pontos de vista diferentes e complementares, com depoimentos que chegam a ser hilários, como os de Paulo Lepetit (para quem “o sucesso bateu várias vezes na porta do Itamar, mas ele nunca atendeu”). Outros dão conta do lado extremamente controlador do artista, que fazia questão de ter poder de decisão absoluto sobre tudo que envolvia o seu trabalho, mesmo que isso muitas vezes resultasse em discos mal gravados. O depoimento mais interessante, porém, talvez seja o de uma amiga bem próxima, que diz que a opção do artista criou uma obra 100% intacta, exatamente como foi concebida por ele. De fato, algumas tentativas de produção mais “profissional” em discos do compositor geraram resultados de gosto duvidoso, como a trilogia “Bicho de Sete Cabeças”, gravada com a banda feminina Orquídeas do Brasil no começo dos anos 1990. Nesses discos, a produção muito limpa e os timbres ainda presos nos anos 80 (incomoda especialmente o reverb exagerado da bateria) têm um gosto inegável de subproduto, plasfiticando com embalagem reciclada um conteúdo que deveria ser mantido ao ar livre. É verdade que o disco em homenagem a Ataulfo Alves (“Pra Sempre Agora”) e “Isso Vai Dar Repercussão”, com Naná Vasconcelos, se beneficiaram muito da produção cuidadosa, mas discos “artesanais” da fase da Isca de Polícia, como “Sampa Midnight” e “Às Próprias Custas S/A”, sempre criticados em termos de produção, têm a força de um diamante bruto e é questionável que algum produtor do país à época pudesse ter efeito positivo sobre eles.
Itamar além do senso comum
Um elemento interessante no filme é a destreza com que ele se posta além dos clichês sobre Itamar – em especial o mais batido deles, o do “artista maldito”. Ciente da força que o trabalho do biografado tinha ao vivo, o diretor deixa as imagens falarem por si e vai tecendo uma trama intuitiva, emocional, de um pesquisador sério e apaixonado, que deixou fatos e depoimentos falarem mais alto do que ideias preconcebidas. O tom emocional dá certo na maior parte do filme e chega a arrancar lágrimas, especialmente nas imagens dos últimos shows do artista e em depoimentos como o do guitarrista Luiz Waack. Em alguns momentos, porém, o documentário tenta criar situações emotivas que acabam soando artificiais, abusando de focos exagerados nos entrevistados que remetem à teledramaturgia. Esses deslizes, contudo, são pequenos e estão longe de estragar o filme.
Outro ponto controverso sobre Itamar que está quase ausente é o abuso de drogas. Alguns entrevistados falam de forma genérica sobre “a loucura” do artista (a filha Anelis é quem vai mais longe, ao falar do pai "junkie"), mas o tema só é abordado diretamente no final, pelo próprio. Já no fim da vida, prestes a enfrentar outra seção de quimioterapia, ele sentencia, com seu humor característico: “Prefiro as minhas drogas, elas são mais leves”. Especula-se que o músico fumava crack, mas esse assunto nunca foi discutido publicamente (incluo aqui a reportagem assinada por mim na Soma #14). Não se sabe em que quantidade ou frequência ele consumia essa e outras drogas, e principalmente em que medida o hábito (vício?) influenciou sua doença, vida pessoal e música. O fato de o filme não avançar nesse sentido pode deixar um sentimento de frustação em princípio, especialmente se considerarmos a obra em perspectiva histórica, como provável peça única sobre o artista. Ainda mais se levarmos em conta que o tema, tabu na imprensa e na sociedade brasileira, é via de regra pouco ou nada explorado nos documentários musicais (outro exemplo é a biografia de Jards Macalé), ou então é tratado com sensacionalismo. Como comparação, qualquer filme sobre Coltrane ou Charlie Parker passa obrigatoriamente pelo vício de ambos em heroína, droga que teve papel central no nascimento e em todo o desenvolvimento do be-bop. Entretanto, compreende-se a escolha do diretor, que, longe de fazer um filme careta, optou por um recorte mais musical e intimista, focando em controvérsias que talvez sejam mais pertinentes para o momento atual, de resgate da obra do compositor.
“Daquele Instante em Diante” é um filme obrigatório a todo interessado em música brasileira e a qualquer compositor que deseja produzir algo relevante (é um universo inteiro a ser desvendado pelo rap, por exemplo). Mas não só isso: também é surpreendente ao espectador que conhece pouco ou nada sobre a obra de Itamar Assumpção. Ali, na boca dos amigos e parceiros e nas imagens de apresentações realmente únicas, está o retrato vivo de um homem extraordinário e de um artista inigualável na história da música mundial.