O dicionário oferece os seguintes sinônimos para a palavra “eclusa”: açude, comporta, dique, represa, “obra de alvenaria que, munida de comportas, forma uma câmara destinada a tornar navegável um curso de água”. Serve perfeitamente como metáfora para o ato de manipular, compor, desfazer, refazer o som no intuito de obter um determinado efeito ou resultado. Dificilmente outra imagem seria mais adequada para batizar o conteúdo desta colaboração.
De um lado, o projeto do paulistano Carlos Issa (eletrônicos, guitarra, FX, arte), mais conhecido como Objeto Amarelo; de outro, o americano Rob Mazurek (trompete, eletrônicos). Pois não se trata simplesmente de um registro de apresentação ou improviso extenso, como é de se supor diante de uma leitura apressada do release. Ao contrário, o procedimento e o resultado de Eclusa indicam um alto grau de manipulação sonora, que reconduz os fragmentos de improvisação para um outro registro.
Eclusa foi composto a partir de blocos de sons extraídos de trechos de ensaios, gravações e arquivos de performances improvisadas protagonizadas por Issa e Mazurek. Os shows, que ocorreram como parte da exposição “Sinais de Fumaça” (2009, CCSP) e também no extinto CCPC, a convite da banda argentina Tilda Flippers, foram decompostos e remisturados pelos autores, formando uma terceira composição que, segundo o release, se propõe a “diluir a nostalgia do disco ao vivo.”
Dito isto, me arrisco a afirmar que o resultado possui, como um aspecto fundamental, o caráter “crítico”, em diálogo com a arte sonora e demais crossovers entre arte e som. Ora, é possível detectar a manipulação da forma, sobretudo pela característica divergente de cada um dos lados do 7” — o lado A, abstrato minimalista, o lado B, abstrato noise. O que leva necessariamente ao problema da composição: onde ela se situa exatamente? No resultado do produto final, um 7”? Na composição gerada pela manipulação? Nos diversos momentos de improviso que formaram o banco de sons a partir dos quais os autores trabalharam? Neste sentido, acertaram em cheio na forma como redispuseram os sons no espaço, valendo-se da própria fluidez e aparência dos improvisos. Assim, “diluir a nostalgia” implica em desconstruir o sentimento evocativo, abrindo caminho para novas experiências.
Apenas uma nota negativa, que de forma alguma compromete o resultado final: exatamente porque adquiriram uma dicção espontânea nesse processo aparentemente frio e racional, ao fim do compacto me flagrei querendo mais. Talvez fosse o caso de aguardar (e torcer) por novas colaborações entre Issa e Mazurek, na mesma direção ambiciosa e imprevisível de Eclusa.
Bernardo Oliveira escreve no site .