Fotos por Divulgação
No single “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)”, Mano Brown conclama o ouvinte a sentir a necessidade de uma revolução permanente, que não se curve diante de ordens estabelecidas e que busque algo além de mudanças superficiais. “Ver Davi matar Golias, nos trevos e cancelas, becos e vielas, guetos e favelas”, diz um dos versos. A intenção do vocalista do Racionais MCs ganhou cores particularmente reais durante a subida inclemente das ladeiras da Vila Nova Cachoeirinha, rumo ao show de lançamento do DVD Realizando Sonhos, o primeiro gravado pelo rapper Projota. Em cada esquina, ainda ficam claros os sintomas de que a periferia está longe dos planos da administração pública de São Paulo. Segue viva, portanto, a necessidade de mobilização local, do desenvolvimento de projetos que incentivem a cultura longe do centro, de reuniões comunitárias a shows gratuitos.
Para tentar incluir o maior número de pessoas possível, o Centro Cultural da Juventude decidiu promover o evento na rua, sem limite de público e sem venda de ingressos. O que era para ser um pequeno show do rap da Zona Norte, no entanto, se transformou em uma manifestação eloquente da força da periferia: segundo a estimativa oficial, o público ultrapassou 16 mil pessoas, sem contar os inúmeros fãs que assistiram a tudo de ruas vizinhas ou instalados em prédios da região.
Realizando Sonhos
Por volta das 17h30 do domingo de sol, Projota entrou no palco ao som de “Desci a Ladeira”, primeira faixa da mixtape Não Há Lugar Melhor No Mundo que o Nosso Lugar. Na letra, o rapper fala sobre as dificuldades de tentar a vida em um mundo que nem sempre nos permite voltar para casa. “Mano, ouço esse rap todo dia antes de pegar a lotação pro trampo. Dá o mesmo medo de não voltar pra casa depois”, contou um garoto que chegou ao local cinco horas antes do show, enfrentando os quase 40 km que separam o Capão Redondo, Zona Sul da cidade, da Vila Nova Cachoeirinha. O que pode parecer um clichê anacrônico, para quem olha o rap atual sob o ângulo de um movimento que saiu da periferia, exibe ali toda sua inegável atualidade, renovada diariamente no cotidiano de quem não vive do lado mais favorecido da cidade. “Tocar de graça, no meio da comunidade, sem paredes, pra minha quebrada, é a prova de que esse DVD teve razão de ser quando foi batizado de Realizando Sonhos”, afirmou Projota.
Ao vivo, o disco mais recente do rapper se transforma. É como se as bases só ganhassem sentido verdadeiro quando Projota rima no palco, sem freios, sem retoques. O som do show, com as caixas estourando, era multiplicado pelas vozes que cantavam todos os versos em uníssono. Além da leva gigantesca de fãs que o rapper costuma reunir, chamou a atenção o volume de patricinhas, muitas delas de salto, subindo o morro para testemunhar um show verdadeiramente de rua.
Ao lado de faixas obrigatórias, como a pesada “Pode Se Envolver” – durante a qual o público tentou derrubar as grades de proteção do CCJ –, Projota também revisitou raps de outros discos, como o EP de estreia Carta aos Meus, e os recentes “O Golpe” e “O Rap É Foda”. Com o apoio de bases mais fortes, o rapper acelerou algumas canções e criou uma linguagem que dialoga mais com a energia de cada show do que com uma estrutura pré-definida de apresentação. Um bom exemplo foi quando convidou Marechal para subir ao palco, em “Nós Somos Um Só”. A apresentação ainda teve outros momentos de catarse, como em “Pra Não Dizer Que Não Falei do Ódio”, “O Suficiente”, “Samurai”, “Chuva de Novembro”, “Projeção”, “Véia” e “Mais do Que Pegadas”. Além de Marechal, subiram ao palco ainda a muito aplaudida Karol Conká, e mais Emicida, Rashid, Kamau, Terceira Safra, Flora Matos e os DJs Caíque, Zala e Cia.
Um dos elementos mais importantes na decisão de Projota por lançar seu DVD na quebrada, em vez da escolha habitual por uma casa de shows, foi tirar a prova de como o rap feito nos últimos anos por nomes como ele, Rashid, Flora Matos, Lurdez da Luz, Cone Crew e outros segue dialogando com o público da periferia.
Além de reunir uma molecada mais veterana do rolê, o show foi um bom termômetro para constatar de fato a renovação de um público extremamente jovem, que segue encontrando repostas no rap. E os adolescentes que dominavam a plateia – a grande maioria aparentava ter entre 13 e 18 anos – não se limitavam a conhecer os versos de Projota. A discotecagem do DJ Cia no início provou que a molecada sabe de cor de Racionais a Sabotage, de Câmbio Negro a RZO. O novíssimo público do rap sabe olhar também para o passado, e mostra que o hip-hop nacional está encontrando novas e boas formas de criar narrativas contemporâneas relevantes.