Foi com agradável surpresa que lá pelos meados dos anos 2000 descobrimos que Lourenço Mutarelli era mais que um dos melhores desenhistas da história brasileira. Vieram romances como Jesus Kid e Miguel e os Demônios, adaptações cinematográficas de seus livros O Cheiro do Ralo e O Natimorto, trabalhos como ator, peças para teatro, etc. Mas quem é fã mesmo gosta de vê-lo desenhar e, fora uma curta série feita para o Estadão (Ensaio Sobre a Bobeira), seu último trabalho na área tinha sido Caixa de Areia, de 2005.
Agora, com o lançamento de Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente, é possível acalmar a ansiedade, pelo menos momentaneamente. É que Mutarelli já deixou claro que desenhar tem dado mais trabalho que nunca, ainda mais com o nível de rebuscamento que chegou a partir da trilogia-em-quatro-livros O Dobro de Cinco, e isso lhe causava uma angústia extrema.
Mas o atual livro não é bem uma história em quadrinhos no esquema clássico - está mais para uma sequência de ilustrações de página inteira. A outra diferença para a grande maioria de seus trabalhos é que este foi feito em cores e com tinta acrílica. O resultado é de encher os olhos. Mutarelli está desenhando melhor que nunca, e seu uso de cores surpreende em cada textura de todas as 91 páginas ilustradas do livro.
E para compensar tudo o que escreveu, só escreveu, nesses 6 ou 7 anos, a história do livro é contada com uma invejável economia de palavras. Ou uma fartura reveladora de silêncios, o que preferir. O protagonista é o triste pai-com-cara-de-William-Burroughs do narrador. Homem que perdeu a mulher em um acidente sem sentido, mistura fotos antigas da família com de desconhecidos, desmonta máquinas de escrever, se perde, vê um ET e é colocado em um asilo. E existe o narrador que não entende o que está acontecendo e, no fundo, não quer saber de coisa alguma sobre esse pai triste. Seria humanizá-lo, e o negócio é ir em frente, sempre em frente (pra onde ele também não sabe, nem pensa nisso).
O clima, como era de se esperar, é melancólico, mas tem algo mais. Quer dizer, menos. O texto está enxuto no osso, bem diferente de seus livros de quadrinhos, deixando o sentimentalismo torturado & punk de Mutarelli abrir mais espaço para o leitor fazer suas próprias associações entre texto e imagem. Ainda mais com um sutil embaralhamento de idas e vindas no tempo.
Mas o paulistano não seria o autor que é sem um tanto de seu humor surreal. No livro isso acontece na participação decisiva de dois personagens, com as caras do dramaturgo Mário Bortolotto e do ator Paulo de Tharso (amigos e parceiros de Mutarelli no teatro), dentro de um barco atolado no leito seco de um rio.
Diferentemente de seus quadrinhos anteriores e também dos livros, Quando Meu Pai se Encontrou com o ET... pode ser o começo de uma nova fase ou então uma ponte, ou um esboço, para outra mais nova ainda e igualmente diferente. Ou pode ser apenas mais um livro de Mutarelli, tão belo e triste quanto tudo de melhor que já fez. É isso que importa. Ir em frente.