Formado a partir de uma combinação do São Paulo Underground com o Starlicker, eis o primeiro rebento do octeto de Rob Mazurek. Batizado como Skull Sessions, o álbum traz uma leva de músicos com os quais Mazurek mantém colaborações regulares: o baterista John Herndon, o vibrafonista Jason Adasiewicz, o flautista Nicole Mitchell, Guilherme Granado nos teclados e eletrônicos, Carlos Issa (Objeto Amarelo) na guitarra e nos eletrônicos, Maurício Takara na percussão e cavaquinho e Thomas Rohrer na rabeca e no saxofone. Um time formado na base da amizade, o que se reflete na fluência com que passam do improviso à execução dos temas, do ruído à melodia mais singela, da cornucópia sonora aos detalhes mais imprevistos.
Em 73 minutos, o octeto conduz o ouvinte por cinco faixas que tanto podem se associar à noção geral de jazz (isto é, de improviso), como mantém laços criativos com duas ou três vertentes da música instrumental dos anos 70: a fase fusion de Miles (Bitches Brew, On The Corner), sobretudo na dosagem entre partes ensaiadas e o improviso; o aspecto extático, spiritual, da Fire Music de Sonny Sharrock, Archie Shepp, William Parker; e, por fim, a música brasileira, particularmente do instrumental dos anos 70 desenvolvido por nomes como Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Egberto Gismonti.
Vale notar que essas referências devem apenas situar o leitor no alistamento de contribuições que, parece, constituem o trabalho, mas não esgotam sua significação. A bem da verdade, as Skull Sessions se encontram a meio caminho das modulações do Chicago Underground Duo e da profusão sonora da Exploding Star Orchestra, situando-se assim entre a economia estratégica do primeiro e a ambição harmônica da segunda. Das estratégias, a fluência com que ocorrem as “deixas” para mudar o clima, o andamento ou o arranjo; da ambição harmônica, um certo despojamento punk na hora de sobrepor muitas informações sonoras, característica que dialoga com o jazz de Sun Ra, mas que também constitui um dos grandes talentos de Mazurek. Soma-se a isso a prática do “layering”, da sobreposição (ou justaposição) de linhas e volutas rítmicas, harmônicas e melódicas, com a contribuição fundamental da miscigenação de timbres eletrônicos e acústicos.
Nesse contexto, a frase de Jeff Parker, presente no texto do encarte de Stellar Pulsations, ganha um sentido muito específico: “Rob Mazurek vem explorando a ideia de criar ambientes para perder-se no som”. Ora, há um claro, pregnante, luminoso paradoxo nesta ideia! Trata-se de uma operação que se propõe a conjugar a disposição intencional, isto é, tudo aquilo que o artista pode prever, com o campo de possibilidades em aberto que esta mesma disposição cria. De um lado, a extrema sabedoria técnica, criativa, formal; de outro, um “deixar-se-levar”, uma espontaneidade que se reflete no aspecto cromático do som.
Tal característica se torna perceptível à medida que as primeiras tramas se desenham em “Galactic Ice Skeleton”, dezessete minutos de uma odisseia sonora com forte pegada funky-fusion e traços brazucas nas melodias e harmonias. É notável a presença entrelaçada do vibrafone, da rabeca, dos timbres eletrônicos, e também a forma como os vários timbres ocupam a paisagem da composição. Tal característica se confirma na sequência, com “Voodoo and the Petrified Forest”, faixa que sustenta a aparência lírica da anterior, para desembocar em uma incrível improvisação free, com destaque novamente para a rabeca de Thomas Rohrer e a percussão de Maurício Takara.
“Passing Light Screams”, talvez a faixa que contenha o trecho mais abstrato do álbum, começa com a contribuição de todos os instrumentos digladiando-se de forma tensa e desordenada. De repente, a fonte seca: resta o vibrafone e alguns ruídos discretos executados pela percussão e pela rabeca. Com timbre macio, o trompete descreve uma melodia para, alguns minutos depois, juntar-se à flauta e ao teclado e iniciar um tema sinistro, que irá conduzir em crescendo a faixa para seu fim. O vibrafone introduz a marcha “Skull Caves of Alderon”, cujo belíssimo tema remete ao maracatu e às fanfarras nordestinas. A zoeira noise de seus últimos minutos contrasta com a última faixa do trabalho, “Keeping the Light Up”: neste caso, o jogo passa a ser com as lacunas, os vazios, os silêncios, ocupados de forma parcimoniosa por melodias breves e intervenções discretas.
Um tal equilíbrio entre influência e originalidade, improviso e composição, radicalidade e tradição, som e silêncio requer fluência e comunhão de propósitos. Será? Nada pode ser mais fortalecedor de uma empreitada sonora em conjunto do que a amizade entre seus membros. Certo? A esta altura, já não tenho certezas absolutas, mas no caso específico de Rob Mazurek essas premissas parecem funcionar às mil maravilhas.
Bernardo Oliveira escreve no site .