À primeira vista, Stellar Pulsations pode espantar o ouvinte acostumado aos hibridismos eletro-extáticos promovidos por Rob Mazurek, em virtude de sua aparência mais “tradicional”. Neste álbum de estreia do Pulsar Quartet, quarteto formado por velhos conhecidos do trompetista americano, tomamos contato com uma inflexão instrumental convencionalmente associada ao bebop dos anos sessenta. Este fora meu juízo a partir da primeira audição, ainda no ano passado, cercado de copos, garrafas e amigos ruidosos. Àquela altura, o veredito geral contrastava com a percepção atual: o primeiro, preguiçoso, se deu por satisfeito diante do pouco que ouviu; já o segundo, percebeu (aos poucos, é verdade) o que havia “por trás” da aparência.
Reparando atentamente às sete faixas de Stellar Pulsations, percebe-se que há uma lógica interna que confere a timbragem direta (sem efeitos ou estratégias de manipulação digital) a uma série de composições que reinterpretam fenômenos ligados à história do jazz: em “Primitive Jupiter”, o balanço de Nova Orleans com forte inflexão afrolatina; em “Magic Saturn”, o blues arrastado; em “Spiritual Mars” e “Twister Uranus”, a abstração da fire music em função do puro êxtase; em “Spiral Mercury, a presença negra no soul e no rock; a canção folk, “bossa nova”, em “Folk Song Neptune” e “Spanish Venus”.
O erro é acreditar que a “aparência” é simples! A aparência standard de Stellar Pulsations indica mais do que uma retomada de aspectos formadores do bebop. Stellar Pulsations foi construído com a intenção de utilizar o fraseado nervoso e as síncopes do bebop, lançando-se com liberdade sobre o espectro de influência do jazz norte-americano. E isso tanto no que diz respeito aos ritmos que o precederam (Nova Orleans, o blues), como nas manifestações em que demonstrou poder suficiente para se imiscuir na política (a fire music), influenciar a música de outros países (a bossa, o jazz latino e africano) e até mesmo retomar sua influência na indústria de massa, através do soul e do rock’n’roll.
Assim, o grupo escalado para a empreitada deveria, em primeiro lugar, responder pela dinâmica de “contenção exploratória” proposta por Mazurek. Para formar o quarteto, ele reuniu alguns músicos com quem já trabalha há algum tempo, aliás, como é recorrente em sua trajetória. A pianista Angelica Sanchez, componente da Tri-Centric Orchestra, ao lado de Anthony Braxton, Mary Halvorson, Nate Wooley, entre outros, além de acompanhar Wadada Leo Smith. O baixista Matthew Lux, parceiro de Mazurek em uma pá de projetos, como Chicago Odense Ensemble, Exploding Star Orchestra, Isotope 217, Mandarin Movie, etc.. E os ritmos delirantes de John Herndon, baterista do The Eternals, Tortoise e outros tantos projetos com Mazurek. Esse trio, por si só, já seria motivo suficiente para prender a atenção, ainda mais dentro de uma economia de timbres diretos, sem manipulação ou filtro eletrônicos ou digitais. Mas eles ainda fizeram mais do que isso.
Nesse sentido, se impõe a beleza do Pulsar Quartet: mais do que vivificação, reinterpretação, revival, rememoração, nostalgia, sua aparência mais tradicional produz uma espécie de alargamento dentro do aparato timbrístico do bebop. Afinal, que conversa é essa de “aspectos tradicionais do bebop”, como se o tempo fosse capaz de apagar a predisposição dos músicos desta época para atitudes e tendências mais abertas e fluidas - em outras palavras, seu caráter exploratório sedimentado pela prática da improvisação? O Pulsar Quartet lança-se contra essas hipóteses com a criatividade e o vigor que caracterizam seus músicos. Ainda que em direção diferente, os discos de Branford Marsalis na virada dos 80 para os 90 desempenharam um papel semelhante — sobretudo Crazy People’s Music e Random Abstract. Trata-se de reativar o vocabulário do bebop para produzir, a partir dele, outras possibilidades, inclusive as que foram consideradas divergentes por razões ideológicas, políticas ou sociais.
Bernardo Oliveira escreve no site .