Para muita gente, 2011 foi o ano do rap no Brasil. De fato, foi um ano de ouro: vários discos fenomenais apareceram, MCs viveram momentos de Beatlemania e circularam por ambientes inexplorados e/ou inóspitos (da capa da Serafina ao Coachella, de Canudos aos festivais Fora do Eixo, da Bienal ao palco do VMB). Tudo isso é muito legal, mas por outro lado fica parecendo que o rap surgiu agora por aqui, o que seria no mínimo uma grande injustiça. A história do gênero no Brasil já entra na quarta década e viveu anos tão ou mais gloriosos do que este que termina agora. A verdade é que não importa se seu ano favorito é 1997, 1988 ou 2001: o rap nacional tem pra trocar em qualquer época.
Pensando nisso, a Soma chamou alguns amigos e artistas (a saber: KL Jay, Don L, , , e , mais os editores da Soma Mateus Potumati e Amauri Stamboroski Jr.) para relembrar sons que ajudaram a construir a identidade do gênero neste nosso belo e contraditório país. Como era de se esperar, surgiram literalmente centenas de sons, a maioria dos quais evidentemente não entrou nesta lista. Dizer que nossa relação não é definitiva não vai impedir ninguém de xingar no Twitter, mas que fique dito, para todos os efeitos. A ideia foi contar uma história sobre as principais fases do rap no Brasil, discutindo clássicos e dando crédito devido a heróis esquecidos. E, acima de tudo, se divertir ouvindo um monte de música boa, feita pra endoidar o crânio de maluco sangue bom. Por falar nisso, aí estão elas.
Leia aqui a segunda parte da lista
1. Black Juniors . “Mas que linda estás”
Ano: 1984
Disco: Break
Quando se trata da história do rap no Brasil, o difícil é começar pelo começo. Explica-se: existiram diferentes “primeiros raps” gravados no país. Para alguns, nossa tradição vem dos repentes e das emboladas, que remontam ao período colonial. Para outros, o precursor sem dúvida é o balanço de cantofalado de Jair Rodrigues “”, de 1964. “”, versão de “” cantada por Miéle, data de 1980. Já a infame “”, de Sergio Mallandro, é de 1982.
Na verdade, foi um nome da discothéque o responsável pelo primeiro grupo – e pelo primeiro álbum – de rap do Brasil. O DJ argentino Mister Sam, radicado em SP, já havia se dado bem produzindo cantoras como Gretchen quando resolveu aproveitar a onda do break para lançar o Black Juniors – um quarteto de garotos que começaram dançando break. Puxado pelo hit “Mas Que Linda Estás”, o álbum Break (RGE, 1984) vendeu milhão e meio de cópias e levou o grupo a inúmeros programas de TV, incluindo uma .
O revival dos anos 80 garantiu nova vida ao som, que foi hit em festas Trash 80s e apareceu em versões de Kamau com e – o Jackson 5 brasileiro inclusive reencarnou recentemente. Mas, lá atrás, enquanto esvanecia a fama do Black Juniors, os bailes black e a turma que se reunia numa estação de metrô em São Paulo começavam um longo caminho em busca de identidade própria. [AS]
2. Thaíde e DJ Hum . “Corpo Fechado”
Ano: 1988
Disco: Hip Hop Cultura de Rua
Raridade: , durante um freestyle de Thaíde na São Bento
Lançada em 1988, Hip Hop Cultura de Rua não foi a primeira coletânea de rap que saiu no Brasil (o título é de A Ousadia do Rap, de 1987), mas pode ser considerada, ao lado do volume de estreia da série Consciência Black, o big bang do rap nacional. Ambos os discos exerceram o papel pioneiro de apresentar o hip-hop como uma cena, que começava a ganhar corpo em pontos como o Metrô São Bento, no centro de São Paulo. Mas o legado mais importante desses lançamentos foi registrar em vinil, pela primeira vez, os nomes de Thaíde e DJ Hum e Racionais MCs.
Com samples de clássicos como “16 Toneladas” e “Pump Me Up”, “Corpo Fechado” tem a levada típica do som que embalava os b-boys da São Bento: a edição esperta do DJ Hum é dançante ao mesmo tempo que cria contextos quase cômicos com os samples, lançando um estilo de produção que se tornaria referência. O beat relaxado e o flow old-school de Thaíde dão um tom mais leve à letra, que como em “The Message” introduz temas sobre afirmação e conflitos de um jovem da periferia. O jogo estava apenas começando. [MP]
3. Ndee Naldinho . “Melô da Lagartixa”
Ano: 1988
Disco: Som das Ruas
Lá pela metade dos anos 80, o rap já era um dos ritmos mais tocados nos bailes black de SP. Mesmo com o sucesso, a barreira da língua, especialmente para um gênero baseado na fala, ainda era grande. De qualquer jeito, a galera dos bailes dava um jeito de inventar as letras para poder cantar os refrões. E assim como “” do Run-DMC virou “Taca Tomate”, “” de Chubb Rock se transformou em “Melô da Lagartixa”.
Ndee Naldinho – então Ndee do Rap – estreou com essa faixa na coletânea Som das Ruas, de 1988, da equipe de bailes Chic Show, numa letra bem bolada que falava sobre misturar rap e samba-rock. A coletânea também marca as últimas parcerias entre as equipes e o rap. Em São Paulo, no final dos anos 80 e começo dos 90, algumas desavenças e a busca de uma linguagem própria fazem o rap se descolar aos poucos da cultura hip-hop e trilhar um caminho separado, enquanto equipes como a gigantesca Chic Show encerravam as atividades. [AS]
4. Racionais MCs . “Pânico na Zona Sul”
Anos: 1988/1990
Discos: Consciência Black Vol. 1 / Holocausto Urbano
“Aqui é Racionais MCs”, manda Edy Rock no começo de “Pânico na Zona Sul”. Como “Corpo Fechado”, a estreia em disco dos Racionais introduziu, mais do que um grupo, um novo estilo de pensar e fazer rap no Brasil. À primeira audição, a batida e flow ainda soam bastante familiares ao ambiente b-boy/São Bento, mas já estão ali os elementos que fizeram do grupo o maior do rap brasileiro: o talento musical raro de KL Jay, o olhar agudo e corajoso de Mano Brown, o carisma maloqueiro de Ice Blue e a força bruta de Edy Rock.
Chama atenção especial a forma como KL Jay trabalha as bases, todas de músicas de James Brown: a guitarra e o baixo são de “Big Payback” (que, por sinal, fala de tema semelhante), mas o loop da bateria é de “Funky Drummer”, um dos mais sampleados da história. A letra fala sobre a ação dos grupos de extermínio comandados por policiais que aterrorizavam a Zona Sul e o ABC nos anos 80, e foram desmantelados com o surgimento do PCC (sorry, Governo do Estado). “Caiu como uma bomba”, resume Xis à perfeição. [MP]
5. Câmbio Negro . “Sub-Raça”
Ano: 1993
Disco: Sub-Raça
Três anos depois de Holocausto Urbano, o rap com consciência étnica e social – e suas críticas agudas à sociedade – se tornava a principal vertente do gênero no Brasil. Ao mesmo tempo, alguns grupos começavam a usar elementos do rock e surgia o embrião do rapcore nacional. O Câmbio Negro foi um dos precursores desse movimento e colocou o rap da Ceilândia (periferia de Brasília) no mapa. “O Câmbio Negro veio pra falar as nossas gírias, de nossa realidade e de nossas influências. ‘Véi’ em vez de ‘mano’, ‘quebrada’ em vez de ‘área’. Samplear AC-DC e Gerson King Combo sem receio. Era a identidade candanga nos sons”, explica o também candango DJ TyDoZ neste texto.
“Sub-Raça” não tem samples de rock, mas tem uma das letras mais punk do rap nacional. De quebra, é uma pedrada contra a alienação dos meios de comunicação com a mesma intensidade (e sem o mesmo humor) de “She Watch Channel Zero?!”, do Public Enemy. A imagem sub-Freyreana do artista negro cordial e acrítico, propagada pela nossa indústria cultural das novelas à música de massa, ganhava um irmão gêmeo indigesto, que vinha para ficar. [MP]
6. Racionais MCs . “Fim de Semana no Parque”
Ano: 1993
Disco: Raio X Brasil
Algumas músicas entram para a história como “o som que mudou tudo”. Os Racionais colocaram vários raps no topo da tradição musical brasileira, mas “Fim de Semana no Parque” simboliza algo além: o inescrutável e frequentemente subestimado poder transformador da música. Lançada originalmente no disco Raio X Brasil, foi a partir da coletânea Racionais MC’s, de 1994, que a faixa ganhou o Brasil, até entrar a fórceps na programação das FMs – “95 abalou/ Apavorou cidade/ Quem é me compreende/ Quem é rap sabe”, lembrava Sabotage em “Na Zona Sul”.
“Fim de Semana...” não só mostrou a espantosa evolução do quarteto – em termos de narrativa, de uso de samples, de capacidade de atingir –, como expandiu as ambições intelectuais do gênero. Não é exagero dizer que também foi fundamental no fortalecimento de uma identidade periférica no país, unindo o relato vivo de uma tragédia urbana a um orgulho de classe novo e sagaz (“É lá que moram meus irmãos, meus amigos/ E a maioria por aqui se parece comigo”). Uma escola inteira para gerações em pouco mais de 7 minutos. [MP]
7. Gabriel o Pensador . “Lôraburra”
Ano: 1993
Disco: Gabriel o Pensador
Enquanto nas periferias o rap colava nos movimentos de consciência negra, um carioca de São Conrado, filho de médico e jornalista, inundava as rádios com suas rimas. De barba e chinelos, Gabriel apareceu primeiro com “Tô Feliz, Matei o Presidente”, onde fantasiava dar um tiro no então altamente impopular Fernando Collor de Mello. A faixa foi censurada nas rádios, mas circulou freneticamente via fitas cassete e garantiu um contrato com o selo Chaos, da Sony (que também lançaria o Planet Hemp e outros).
Mas foi “Lôraburra”, com sua letra sexista dedicada às biatches sem conteúdo intelectual, que varreu o país. Era a primeira vez que muita gente fora dos grandes centros ouvia rap em português, incluindo a citação aos Racionais no sample de “Mulheres Vulgares”. A faixa se alimentou da polêmica – numa época em que isso significava uma matéria no Fantástico com depoimentos de populares, e não um Trending Topic do Twitter – e acabou puxando outros hits do álbum na esteira, como “175 Nada Especial” e a versão masculina de “Lôraburra”, “Retrato de um Playboy”. [AS]
8. Athalyba e a Firma . “Política”
Ano: 1994
Disco: Athalyba e a Firma
Pioneiro no rap nacional com o , nos anos 90 Athalyba Man chamou o DJ Cri (também do Região Abissal) e o MC GM Duda e montou o grupo Athalyba e a Firma. Com “Política”, que concorreu ao primeiro VMB da história, em 1995, o MC juntou um flow à Native Tongues com poesia à Chico Buarque, em que a maioria das as rimas terminam em proparoxítonas. O próprio Athalyba conta a história: “Na época eu tinha viajado para Miami e trouxe de lá uma fita K7 (vai vendo) com um (ou era uma fita K7 da Mary J Blige que tinha um som da Janet Jackson em cima? Não lembro...). O fato é que, já em Miami, ouvindo o instrumental me veio o refrão : ‘de política em política’. De volta ao Brasil comecei a confeccionar a letra, pontuando as rimas com palavras proparoxítonas, que davam força na pronúncia, e a elas se seguia com uma pausa no ritmo (ou flow, como se diz hoje). Isso me deixou tão empolgado que fiquei praticamente 48 horas sem sair de cima, terminei a letra com dois quilos a menos e horas de sono atrasado, mas valeu a pena”. Valeu a pena para todo mundo. [AS]
9. RPW . “Pule ou Empurre”
Ano: 1994/1996
Discos: Pule ou Empurre (12”)/ RPW Está na Área
Como se respondendo ao chamado para os b-boys pogarem contido em “”, do Onyx , São Paulo deu luz a um estilo muito próprio de rap, o chamado bate-cabeça. Principal representante do gênero, o RPW absorveu as batidas aceleradas do rap nova-iorquino de grupos como EPMD e Das EFX e criou a trilha perfeita para o stage diving sem guitarras. A formação também era novidade: além do DJ Paul e de W-Yo, o grupo contava com a rapper Rúbia, uma das pioneiras em colocar a voz feminina no mic no Brasil.
“Pule ou Empurre”, primeiro hit do grupo, “foi febre na legião dos bate-cabeça” segundo DJ Cia, e resume bem o estilo – pra cima, pró-festa, “é pra empurar, mas sem treta”. Além do RPW, grupos como Doctor MCs (que teve o hit mellow “” em 94 e assinou clássicos como “Paranoia” e “UBC”) e Potencial 3 (de “”) também agitavam as festas da União Bate-Cabeça na casa noturna Tio Sam, Zona Norte de SP. [AS]
10. Junior e Leonardo . “Rap das Armas”
Ano: 1995
Disco: De Baile em Baile
Apesar de dividir a mesma raiz com o rap de São Paulo, o funk carioca nunca foi levado a sério por sua contraparte mais sisuda, mesmo antes da sexualização temática do final dos anos 90. O preconceito pode ser com o sotaque, com a tendência para o canto, ou talvez com a influência avassaladora do bounce e do Miami bass. Mas os MCs cariocas não se imaginavam à parte.
Ao lado dos hinos às galeras, surgiam também músicas sobre a vida na favela, como o “”. Uma das mais marcantes nessa linha, “Rap das Armas”, dos MCs Junior e Leonardo, tomou as rádios do Rio de assalto com o refrão “parrá-pá-pá-pá-pá-páá”. Versos como “estamos com um problema/ que é a realidade” deixavam muito som de drão paulistano no chinelo.
Graças à longa lista de armas citadas, o rap ganhou uma versão “proibidão”, gravada por Cidinho e Doca e incluída na trilha de Tropa de Elite. Por conta disso, Leonardo foi convocado a depor em um inquérito: “A delegada quis saber como é que eu fiquei sabendo os nomes das armas. Eu disse que lia o jornal. Não precisa perguntar a vagabundo, é só ler o jornal do dia”, conta o MC no livro Batidão. [AS]
11. Planet Hemp . “Mantenha o Respeito”
Ano: 1995
Disco: Usuário
Pouca gente pensa em “Mantenha o Respeito” como um rap, porque o Planet Hemp era um grupo na intersecção entre o rapcore e o funk-o-metal, numa época em que o Red Hot Chilli Peppers ainda fazia jus ao rótulo e o Rage Against the Machine virava hit de banda cover do interior. Mas Usuário, além de disco-símbolo da união entre rock e rap no Brasil, foi o começo da linhagem cannabística que vai de Marcelo D2 e B Negão ao Cone Crew Diretoria.
Hino máximo do bom proceder maconheiro, “Mantenha o Respeito” soava certamente como um pastiche das bandas citadas acima (mais a levada à Cypress Hill e alguns acordes “inspirados” em “Smells Like Teen Spirit”), mas tem um refrão até hoje difícil de não cantar junto. De quebra, escancarou o movimento pró-descriminalização da maconha, que foi parar até na boca de um certo político que rima com THC. [MP]
12. DMN . “H. Aço”
Ano: 1998
Disco: H. Aço
Quando estourou com “H. Aço”, em 1998, o DMN já tinha longa estrada na cena rap de SP. Formado na Zona Leste da cidade em 89, o quarteto nasceu diretamente ligado às primeiras batalhas de rimas da capital. Depois de aparecer no volume 2 da coletânea Consciência Black, lançou um disco (Cada Vez Mais Preto, de 93) e ficou anos em silêncio. No final do milênio, como um gigante que acorda da hibernação, o DMN voltou faminto para fazer o primeiro hino de um estilo triunfalista, calcado na afirmação individual, que daria o tom no rap 10 anos depois (não por acaso, Emicida, também saído das batalhas de freestyle, cita “H. Aço” em “Triunfo”).
Em ritmo arrastado e febril, a faixa une espírito de pugilista a uma narrativa que remete à dos quadrinhos (por sinal, a capa do disco, assinada por Alex Nascimento, é uma das mais legais do rap-BR) para falar sobre os desafios que levam um jovem comum a se tornar um “homem de aço”. O ritmo inalterado, de transe, a levada limpa e bem encaixada de Markão II e Elly e a participação incendiária de Edi Rock produziram um monolito para inúmeros cavaleiros solitários do ego. [MP]
13. RZO . Todos São Manos (1999)
Ano: 1999
Disco: Todos São Manos
Talvez o salve mais conhecido do rap brasileiro, a faixa título do disco de 99 da Rapaziada da Zona Oeste representa bem o espírito de coletividade que marca a Família RZO – afinal, o trio hoje composto por Sandrão, Helião e DJ Cia revelou Sabotage e Negra Li, entre outros talentos. A produção da faixa e do álbum, explica Cia, “foi para marcar o diferencial da rapaziada, com aquelas dobras e o jeito que os caras cantavam esticando o final das palavras, dando uma valorizada nos ‘s’ das frases”.
Mas além de um chamado de solidariedade às quebradas, “Todos São Manos” também versa sobre o poder redentor do rap, como lembra KL Jay: “Tem uma parte que o Helião fala que na escola a professora falou que ele ia ser um zé ninguém, mas que ele se encontrou no rap. É como aconteceu com o Malcom X. Um clássico”. Uma ideia que ecoaria pelos três anos seguintes, os últimos e mais brilhantes de um ciclo do rap nacional. [AS]
Leia aqui a segunda parte da lista