“MTV? Não vejo MTV desde 1990, cara...”, respondeu o guitarrista Stephen O’Malley quando um dos assessores de imprensa do festival Sónar disse que a MTV queria entrevistá-lo. O ar mezzo enfado, mezzo surpresa do artista faz sentido: enquanto a telinha da emetevê é o território da canção pop de três minutos, O’Malley agrega influências que vão da música indiana clássica ao black metal para criar músicas tão abstratas e com o andamento tão absurdamente lento que a própria percepção da passagem do tempo é alterada.
Prolífico, o guitarrista faz/fez parte de um punhado de bandas e projetos, todos eles voltados para o lado mais pesado e slow motion da música. O mais conhecido é o Sunn O))), duo de doom metal formado com o também guitarrista Greg Anderson no fim dos anos 90. Fortemente influenciado pelo som arrastado de bandas como Earth e Melvins, o Sunn O))) começou tocando em bares de Los Angeles para um público que ficava na casa dos cinco expectadores. Mas os caras persistiram e, em 2003, foram chamados para participar do festival All Tomorrow’s Parties, que naquele ano estava sendo curado pelo Autechre. A partir daí a coisa deslanchou, a banda recebeu convites para tocar em outros festivais, em exposições e até em uma igreja centenária na Noruega. Em 2010, foram capa da The Wire, principal revista de música de vanguarda do mundo.
Os organizadores da edição brasileira do Sónar queriam trazer o Sunn O))), mas como a verba não era suficiente para o transporte de todo o equipamento usado pelo grupo (para ter uma ideia do volume da coisa, na última turnê foram 17 amplificadores e 14 caixas de som), eles acabaram faturando o KTL, duo que conta com O’Malley na guitarra e Peter “Pita” Rehberg no laptop. O projeto começou em 2006, quando os dois foram chamados pela diretora de teatro Gisèle Vienne para compor a música da peça Kindertotenlieder e tocar ao vivo durante a encenação. O universo visual da peça, que conta com cenário coberto de neve falsa e atores realizando movimentos quase em câmera lenta, não poderia ser mais adequado à música do duo – que após esse trabalho com teatro, resolveu se tornar uma banda de fato e gravar discos e fazer shows.
Nos nossos dois encontros (o primeiro no backstage do Sónar e o segundo no lobby do hotel Holiday Inn, onde o visual headbanger de O’Malley contrastava com o clima todo trabalhado em bossa nova de elevador e Romero Britto), conversamos sobre o trabalho com trilha sonora, drones e como encher uma igreja centenária com fãs de black metal.
Como foi o processo de composição da música para a peça?
Peter e eu fomos para o estúdio e fizemos um monte de demos. Foi o ponto de partida. A diretora pegou esse material e começou a criar a peça com os bailarinos e os atores. E aí houve um longo período em que trabalhamos com todo o elenco e modificamos tudo, customizamos a música.
Nos shows, o KTL trabalha muito com improvisação. Para essa peça vocês criaram uma composição estrita?
Sempre há muita improvisação e mesmo quando fazemos shows o material é estruturado. Claro que cada show é diferente, o KTL é muito fluido, as coisas podem mudar e se desenvolver ao longo dos shows ou mesmo durante um show. Com a peça teatral é mais estruturado, porque temos que seguir uma narrativa. Embora tenhamos feito algumas apresentações em que as coisas foram para outra direção. De repente estávamos: “O que estamos fazendo?”. Mas funciona e a diretora gosta dessas mudanças radicais.
Certa vez você descreveu o KTL como música psicodélica, mas o que entendemos por música psicodélica (coisas dos anos 60, influenciadas por LSD) são bem diferentes.
Não é o gênero rock psicodélico, é a experiência de um tipo de música muito abstrata e sugestiva, em que cada pessoa pode ter sua própria interpretação visual. Ela estimula a imaginação do ouvinte. Pode ser alucinógeno de certa forma. Eu acho que a música é algo muito visual e essa é uma das razões por que adoro música: há tantas possibilidades de interpretação.
from on .
O KTL acabou de lançar um disco novo. É a trilha do Sunrise (filme mudo de F.W. Murnau)?
Não. Esse é um outro projeto. O museu do Louvre nos chamou para fazer a trilha sonora de um filme mudo. Parece que, se você faz música experimental, em algum momento vai ser chamado para fazer isso.
Eles queriam que vocês fizessem Nosferatu, certo?
Sim. É um filme incrível, mas vamos combinar… não é um tanto óbvio chamar um fã de metal que trabalha com música experimental para fazer
Nosferatu? Peter e eu achamos que seria mais interessante fazer algo não tão baseado em gênero. Assim há mais oportunidades de reinterpretar o clima do filme.
Em quase todos os seus projetos você trabalha com drones. Quando e como se interessou por essa técnica?
Quando eu era adolescente, tocava em uma banda de gaita de fole. Essa foi minha primeira experiência. Drone é só mais um elemento dentro do contexto musical, é o mesmo que ritmo, harmonia, melodia, todos esses blocos básicos que podem ser combinados em uma peça de música, uma coreografia desses elementos.
Você estudou guitarra ou sua abordagem é mais naïve?
Está cada vez mais naïve, na verdade. Nunca fui a uma escola de música, mas estudo constantemente. Acho que é responsabilidade do músico estar atento e aberto a novas formas. Acho que há pouquíssimos músicos criando algo totalmente novo. Música é tradição. Então eu toco um estilo de música que foi influenciado por um guitarrista como Dylan Carlson, do Earth, que por sua vez é influenciado por alguém como (o compositor minimalista) La Monte Young. É a continuação de uma ideia, um desenvolvimento a longo prazo.
Se a pessoa ouve uma música como a do Sunn O))) sem prestar atenção, vai pensar: “Três powerchords, grande coisa”. Mas se você presta atenção, ouve todos esses harmônicos.
Cada nota tem tanto detalhe, personalidade e caráter… todo som tem, mesmo um som como este (bate na mesa). Esses drones longos são como lentes de aumento. Você vai ouvir isso hoje. Vamos fazer peças em que eu toco basicamente duas notas durante meia hora na guitarra. Se você botar em uma partitura, vão ser só essas duas notas, mas há todo um desenvolvimento acontecendo, desabrochando dentro dessas notas.
Em várias entrevistas você fala sobre o Sunn O))) em termos de arquitetura e escultura. Isso influencia seu modo de compor?
Tiro muita inspiração das artes e gosto muito de arquitetura e escultura. Há muitas expressões que escultores usam e que eu também uso para falar de música: gravidade, massa, representação.
Vocês tocaram em uma exposição do (escultor) Banks Violette.
Ele queria fazer uma escultura dos nossos equipamentos com sal. Levou nossos amplificadores, caixas de som para tirar moldes e disse “Não vou te mostrar as fotos até o projeto estar pronto, ou você vai surtar”, porque ele derramou silicone sobre tudo. Ele nos convidou para tocar na inauguração, em uma galeria em Londres. Olhando para trás, me arrependo um pouco da forma como aconteceu, porque o público não pode entrar no prédio enquanto tocávamos. O conceito era estar fora de sincronia, perder algo. Tocamos no térreo, sobre essas plataformas que também eram esculturas. As esculturas dos equipamentos estavam no andar de cima. Quando terminamos, desmontamos tudo rapidamente e as pessoas entraram. Havia muitos fãs do Sunn O))) e eles ficaram putos. Se você pensar em termos de entretenimento, não faz sentido, mas o Sunn O))) não é isso.
O'Malley faz um brinde no começo do show do KTL Foto: Fernando Martins Ferreira
Mas as pessoas podiam ouvir vocês?
Sim, claro. E o prédio estava tremendo. Mas aí elas entravam e nós não estávamos lá. O Mark Deutrom (ex-baixista do Melvins e colaborador ocasional do Sunn O)))) estava tocando conosco, estávamos bem chapados e ele jogou uma garrafa de vinho na parede e ela se espatifou. E o Banks deixou o estrago lá. Então era como entrar na cena de um crime. Havia apenas essa plataforma, a escultura do caixão no qual o Attila (Csihar, vocalista do Mayhem e também colaborador do duo) estava e as letras que ele escreveu para a ocasião. No andar de cima, estavam os fantasmas dos equipamentos e uma escultura ligada à do caixão. Parece um acidente de avião, uma geometria futurista. Então se a pessoa tiver cabeça aberta… mas muitos fãs eram caras meio idiotas que queriam comprar camisetas e coisas assim, e eles ficaram putos.
E sobre tocar em igrejas? Vocês conseguiram colocar o Attila, vocalist do Mayhem, para cantar em uma igreja na Noruega!
Existe um festival chamado Borealis e eles me chamaram para criar uma peça para o órgão da igreja, que é um dos maiores da Escandinávia. Me pareceu bem interessante, só que eu não toco instrumentos de tecla, então se transformou em um projeto para o Sunn O))). A estrutura política em uma igreja assim é a seguinte: existe o bispo, que é o cabeça de tudo, há o mestre do coral, que tem a palavra final em relação à programação musical da igreja, e a administração, que controla as coisas. O chefe do coral, que gosta da nossa música, nos deu cobertura contra a administração.
No fim, não pudemos usar nossa máquina de gelo seco, mas tudo bem. O show estava lotado, cheio de fãs de black metal, porque o Attila é o cara. Depois do show, claro que a administração falou: “Que evento ótimo, olha quantos jovens vindo à igreja”. Você tem que lembrar que o interesse da administração é aumentar o rebanho e fazer com que o evangelho chegue às pessoas. Para nós, foi um experimento de acústica e de energia psíquica. Nosso intuito foi honrar a construção. Ela foi projetada como um grande câmara de ressonância para o órgão e nossa música funciona muito bem ali, a ressonância se tornou algo tangível no ar.
Quais são os piores e os melhores lugares para tocar o tipo de música abstrata que você faz? Festivais ao ar livre, por exemplo...
Já toquei em cada buraco! Tocar ao ar livre é melhor do que em um bar de esportes no Nebraska ou em uma galeria de arte administrada por um pervertido em St. Louis. Tivemos que dormir nos sofás da sala de estar dele e ele ficava andando pela casa à noite.
Entrevistei o Attila no ano passado e ele disse que os figurinos que ele usa ajudam a atingir o estado de consciência que ele precisa para cantar. E o Sunn O))) tem toda essa coisa ritualística com a neblina e os capuzes que vocês vestem. É só pelo visual ou isso ajuda vocês a atingir um estado de consciência?
Originalmente, era para nos disfarçarmos, porque achávamos que seria muito chato ver dois caras tocando. E fico feliz que tenhamos feito isso, porque trouxemos a cerimônia para dentro da música. Eu gosto quando as coisas são um tanto irreais e imprevisíveis. Já houve situações em que não enxergávamos nem os instrumentos (por causa do gelo seco e das luzes). É como estar levitando. Mas não é romântico. Várias vezes as pessoas perguntam sobre isso e dizem “é um ritual” ou “mágico”, mas o intuito é mudar sua percepção para aquele momento.
Hoje, somos estimulados a fazer cinco coisas ao mesmo tempo, e com uma música como a do Sunn O))), é preciso parar para ouvir.
O modelo econômico nos torna escravos. Você acaba se distraindo tanto com esses detalhes, gadgets e pequenos eventos que não há nenhum espaço para considerar filosofia, propósitos ou música. Me livrei do iPhone há dois meses. Uso bastante o computador para me comunicar e para arte, é uma ferramenta incrível, mas por que vou visitar um fórum de música enquanto estou andando de metrô por Paris? É absurdo. Percebi que estava passando muito tempo nisso e os livros que eu comprava estavam ficando empilhados. É um fenômeno potencialmente muito perigoso. O pensamento fica tão fragmentado que a pessoa não consegue ouvir uma música de 20 minutos.
Sobre o Khanate: ouvi um disco e me pareceu sombrio e depressivo, lembra Swans.
Essa banda acabou em 2006, existiu durante uns 5 ou 6 anos. Eu morava em Nova York, não era fácil. Há muita tensão e atrito. Acredito que isso alimentava a música diretamente. E o relacionamento dentro da banda também era bem tenso. Mas se você curtiu a música, queria que tivesse visto a banda ao vivo, porque era muito forte, mais forte que Sunn O))). Não só pela massa sonora, mas pela tensão. A atitude da música era mais tóxica.
Dark.
Eu não uso essa palavra com adjetivo, a não ser no sentido literal, para falar de cor, porque é muito subjetivo. Acho interessante como as pessoas falam sobre o Sunn O))) especialmente, porque são pontos de vista tão diferentes. “É tão claustrofóbico e perverso e sufocante”. E eu falo: “Sério? Porque eu estou tocando e me sinto evaporar, uma puta liberação”. “Você está tentando evocar um tipo de magia negra?” e eu respondo “Não”. E aí uma outra pessoa diz: “É uma forma de raga e eu entrei em transe”. Tudo isso é válido. O Sunn O))) é muito subjetivo e é por isso que a parte visual funciona, é por isso que tudo bem o Attila subir no palco vestido de mineral. Já o Khanate é mais humano.
Você é fã de black metal, então queria te perguntar sobre algo que o Anders Odden (músico que tocou com bandas como Celtic Frost e Satyricon) disse. Ele acha que os crimes que aconteceram na cena black metal nos anos 90 prejudicaram a música. Se não fosse por isso, hoje o BM poderia ser considerado uma forma genuína de arte de vanguarda. Concorda com ele?
Não. Se não tivesse acontecido, provavelmente o black metal faria parte do mundo cartoon do metal. Não acho que foram eventos positivos, foram terríveis. Assassinato? Destruir monumentos antigos? É estúpido. E as pessoas por trás desses eventos eram uns idiotas, especialmente o Vikernes, aquele bosta de nazista – embora eu goste de como ele toca guitarra. Mas algumas bandas são consideradas assim (arte de vanguarda). Uma das mais respeitadas atualmente é a Deathspell Omega. Mas a maior parte do black metal não merece ser considerada assim, é lixo. O problema do black metal é que várias pessoas envolvidas acham que são muito mais espertas e criativas do que realmente são. Existe esse senso inflado de importância, enquanto o que está acontecendo é uma repetição de ideias primitivas.
Como você se sente com nazismo rolando no black metal? Para mim é tão bizarro… tipo, o cara tem cabelo até a cintura, usa essas roupas e está alinhado com as pessoas mais conservadoras...
Talvez seja a única cena em que há moda travesti e white power ao mesmo tempo. Os caras mais linha-dura do black metal parecem mulheres. Então há esses caras de aparência efeminada abraçando um discurso racista. E simplesmente engolindo. A coisa anti-semita veio do Vikernes e de algumas bandas polonesas dos anos 90 falando “Cristianismo é uma religião judaica, então vamos ser anti-semitas”. Desculpe, você é polonês, metade da população polonesa é judia. É totalmente retardado.