Todo artista com cadeira cativa no Olimpo da música tem sua fase áurea, seja ela um disco antológico ou uma década de produções impecáveis. E a impressão que temos é a de que as mentes destes indivíduos funcionavam em outra frequência e estavam em outro ponto do cosmo no momento exato em que determinadas obras-primas foram concebidas. No caso dos clássicos Check Your Head, dos Beastie Boys, e Music Of My Mind, de Stevie Wonder, a alusão à mente criativa é tão explícita que está impressa na própria capa dos álbuns.
Conhecidos por sua versatilidade, inventividade e pelas milhares de referências à cultura pop, o trio nova-iorquino dos Beastie Boys tem em Check Your Head sua verdadeira obra-prima, e o título do play parecia – e ainda parece – instigar o ouvinte a expandir os limites da assimilação de sua música, uma instigante mistura de rap, funk, punk rock, hardcore e jazz.
Music of My Mind é discutivelmente o melhor dos LPs da espetacular discografia do mestre Stevie Wonder, e tentar compreender o que se passava na cabeça desse gênio do soul-jazz estadunidense é um desafio bastante complexo. O que se sabe é que Stevie ergueu o já altíssimo sarrafo das produções soul durante a década de 70, harmonizando com maestria suas composições e inserindo elementos elétricos ao seu já complexo universo musical.
Ambos os artistas são responsáveis por LPs que evidenciaram a abertura de suas cabeças às referências estereofônicas de seus respectivos passados, presentes e do futuros – sejam eles 1972 (ano de lancamento de Music of My Mind), 1992 (ano de lançamento de Check Your Head), 2012 ou 2032.
Beastie Boys – Check Your Head (Capitol/Grand Royal, 1992)
O clássico absoluto dos Beastie Boys catapultou as figuras de Adam Yauch, Michael Diamond e Adam Horowitz ao posto de ícones da cultura alternativa/indie dos EUA e posteriormente do mundo numa época em que ser indie não era exatamente chacoalhar ao som de roquezinho dançante (ah, os anos 90...). A então inovadora mistura de estilos associados à cultura negra foi automaticamente assimilada e o toque pessoal dos Beasties deu autenticidade ao produto; respeitados por rappers, roqueiros e tiozões do soul-jazz, MCA, Mike D e AdRock criaram tendências musicalmente e também na tal da atitude; milhares de jovens japoneses, dinamarqueses, brasileiros e panamenhos passaram a acompanhar atentamente tudo o que o trio criava, dizia, vestia e sacaneava (sim, os Beasties também importunaram hordas de jornalistas incautos com seu humor bastante peculiar).
O Fato é que CYH é o produto da fundamental parceria entre o trio e o produtor Mario Caldato. Acompanhados pelo coringa Money Mark, que se dividia entre construir a pista de skate do G-Son e as tarefas de tecladista da turma, o quarteto criou um punhado de raps atemporais (como “Jimmy James”, “So Watcha Want”, “Finger Lickin’” e “Pass The Mic”), alguns clássicos instrumentais (como “Something’s Got To Give” e “In 3’s”) e podreiras de fazer inveja aos Bad Brains (“Time For Livin’”). A mistura de MPCs, instrumentos e a vibe essencialmente orgânica das gravações tornou o LP uma espécie de portfólio dos Beasties (como se Paul’s Boutique não fosse suficiente!), e chacoalhou o universo pop numa época especialmente criativa para o rap e para as experimentações e fusões entre estilos.
Check Your Head pode ser considerado ainda uma vitória – ainda que o trio jamais tivesse imaginado tal cenário – de um trio de cabeças-duras que insistiu em continuar caminhando num cenário onde “judeus brancos de classe média não deveriam estar fazendo rap”. Ahã. E pensar que, se dependesse da cabeça do produtor-fanfarrão Rick Rubin, os caras ainda seriam o Run-DMC de Tribeca...
Stevie Wonder – Music Of My Mind (Motown, 1972)
"The sounds themselves come from inside his mind. The man is his own instrument. The instrument is an orchestra." (“Os sons vêm de dentro de sua mente. O homem é seu próprio instrumento. O instrumento é uma orquestra.”)
Essas palavras estão no encarte de Music Of My Mind (1972), primeiro disco do mestre Stevie Wonder sob seu novo contrato com a Motown. Music (...) representa ainda uma significativa mudança do estilo de Stevie; a influência de sua obsessão com moogs e sintetizadores fica evidente em faixas como as belíssimas “Superwoman (Where Were You When I Need You)” – favorita deste que vos fala –, “I Love Every Little Thing About You” e “Happier Than The Morning Sun”. A maestria de sua produção, resultado prático de anos de aprendizado dentro dos estúdios da Motown, começa a torná-lo uma espécie de figura além de seu tempo. A mistura azeitada de instrumentação ao vivo (bateria, piano e até mesmo a tradicional gaita) com os elementos elétricos, sua especialidade, são somados ao enorme talento do compositor. A delicadeza com que Stevie descreve as mulheres de suas músicas é particularmente inspiradora, e torna-se bastante fácil entender porque divas como Syreeta se apaixonaram pelo Maravilha em 72.
Stevie certa vez revelou a um programa de TV sobre a Motown que, quando criança, adorava ficar em sua sala de estar, ouvindo os cantores de rádio que o “levavam a uma nova dimensão”. A música que preencheu a mente do pequeno/jovem Stevie nos anos 50 e início dos anos 60 é o combustível necessário para o processo de concepção de Music (...), que, se não é sua obra-prima, certamente pavimentou o caminho para que clássicos icônicos como Songs In The Key of Life, de 76, fossem criados.
A criação de Music Of My Mind é a prova de que, muitas vezes, uma única cabeça pode pensar melhor do que várias.
(Um agradecimento especial ao amigo Ramiro Zwetsch, que me ajudou a definir o tema do Obras Primas desta edição, e é também o responsável pelo nome da coluna desde sempre. Valeu, Ramires!)