Conexão Vivo Belém: o Triunfo da Aparelhagem

Três noites derretendo no coração da cena paraense

POR Stefanie Gaspar publicado em 31.10.2011

compartilhe esta notícia

Durante quatro dias de programação, com mais de 30 atrações nacionais, o Conexão Vivo Belém conseguiu reunir em média um público de 10 mil pessoas por dia (competindo com inaugurações de novas casas noturnas na cidade) e apresentou uma estrutura bem organizada, capaz de receber sem problemas a variada plateia que compareceu à Praça Dom Pedro II. Mesmo com uma programação que tentou equilibrar diversos estilos musicais, não houve dúvidas a respeito da principal atração do festival: o carimbó, representado por artistas como Dona Onete, Lia Sophia e Pinduca.

Primeiro e Segundo Dia

Na quinta, 27, os destaques da programação foram o músico Lenine - que, mesmo sem repetir a euforia de , conquistou a plateia com facilidade -, Ivan Cardoso e Marku Ribas. O segundo dia começou com a apresentação inesperada dos paraenses Ultraleve e o Clássico Popular, que trouxeram para o palco do festival um show que mistura rock pesado com influências da música clássica, reinventando arranjos de cordas e metais a partir de pesquisas de música popular do Pará. Embora o show ainda precise ganhar mais coesão e ser mais fluente em relação a seu repertório, a banda agradou o público e abriu bem a programação da sexta.

Conversa de Violões Brasil x Argentina

A noite agradável continuou com a parceria entre o paraense Sebastião Tapajós e o argentino . Os dois compositores estão divulgando o álbum em parceria Conversa de Violões, e aproveitaram o palco do Conexão Vivo para unir seus repertórios em um show com músicas de Piazzolla ("Verano Porteño" e "Primavera Porteña") e composições próprias. Em seguida, a também paraense Aíla fez uma apresentação com boa escolha de repertório (com "Sinhá Pureza", de Pinduca, uma das canções mais tocadas do festival, "Proposta Indecente", de Dona Odete e "Preciso Ouvir Música Sem Você", de Felipe Cordeiro), pouco antes do show dos baianos do Vendo 147, que não agradaram muito o público com seu instrumental de bateria siamesa (no qual um mesmo bumbo é tocado por duas pessoas para potencializar o efeito sonoro).

Lucas Santtana: estreia em Belém



Definitivamente, o show era um peixe fora d’água na programação de sexta, problema que não acometeu Lucas Santtana, que fez no Conexão Vivo seu primeiro show em Belém. O músico apresentou o repertório de seu álbum mais recente, Sem Nostalgia, que traz experimentações em cima das possibilidades sonoras do violão, passando por diferentes estilos musicais e trazendo desde elementos do sample até acordes mais introspectivos. Ao vivo, entretanto, o músico transforma esse tino experimental em um ritmo mais festivo, com arranjos agitados e vocal mais intenso. Lucas fez alegria da plateia com "Ogodô Ano 200", de Tom Zé, e "Recado Para Pio Lobato", homenagem ao guitarrista paraense. “Eu nem devia falar isso, mas fiz uma música para Belém pro meu disco novo”, afirmou ele.

Marco André e Pepeu Gomes



Em um dos principais shows da noite, o paraense Marco André carregou no carimbó grooveado ao lado do grupo de percussão Trio Manari, transformando o palco do Conexão Vivo em uma celebração da cultura do Pará. O show ganhou ainda mais peso com a breve participação especial de Pepeu Gomes, que tocou "Mil e Uma Noites de Amor" e "Também Quero Beijar".


Terceiro Dia


Violoncelistas da Amazônia, Duelo de MCs


O sábado começou com a orquestra juvenil de Violoncelistas da Amazônia, que conquistou o público logo de cara fazendo versões a partir de uma base clássica para hits dos Beatles ("All My Loving", "I Wanna Hold Your Hand" e "Eleanor Rigby"), Metallica ("Fade to Black" e "Nothing Else Matters") e até o hino farofa dos anos 1980 "The Final Countdown", do Europe. O show, energético e sem erros de execução, ganhou de imediato o coração da plateia, que aplaudiu de pé os jovens talentos da orquestra – um feito pouco usual entre as bandas que têm a difícil tarefa de abrir a programação de festivais. Logo em seguida, mesmo encontrando pouca sintonia com o público da noite, a Família de Rua na Estrada apresentou ao Conexão Vivo um Duelo de MCs, explicando para o público o funcionamento das batalhas e como seria eleito o vencedor. Apesar de uma inibição inicial, o público logo se enturmou e participou das batalhas, elegendo seus favoritos e se indignando com a decisão de alguns juízes.

Dona Onete



Em seguida, o rastaman de Minas Celso Moretti fez uma apresentação pouco festejada pelo público, que não estava no clima do reggae e participou pouco do show. O clima mudou com o carimbó sincopado e apaixonado de Dona Onete, que fez a alegria dos casais com sua entonação melodiosa e sua sempre notável capacidade de criar climas românticos a qualquer momento. O show, que teve hits de sua carreira como "Batuque Forte", "Proposta Indecente" e "Lua Namoradeira", contou com a participação do produtor Marco André, e foi um dos auges da noite de sábado, com os casais dançando coladinhos sob o clima aconchegante de Belém.

Juliana Sinimbú + Pinduca, o "Rei do Carimbó": convidado em sua própria festa?



Embora fosse a principal atração do sábado, fez uma mistura de guitarrada e carimbó que agradou apenas parte do público, já que todos esperavam a entrada do convidado especial . Quando finalmente entrou, para uma aparição de pouco mais de dez minutos, o músico apresentou "Carimbó do Macaco" e "Dança do Carimbó", e fez questão de acentuar, em tom de troça: “eu não estou morto, gente, estou vivo, estou aqui!” Ao agradecer Juliana pelo convite (o compositor é amigo da família da cantora), Pinduca soltou uma leve farpa ao dar ênfase no “obrigado pelo convite para participar do seu show”, como se lamentasse a falta de um as apresentação só para si em uma programação que exalta a cultura paraense.

A maratona de shows terminou domingo com a apresentação infantil do Catibiribão, de Minas Gerais, o rapper pernambucano Zé Brown, a festa do paraense da lambada Manoel Cordeiro, a banda de rock goiana Gloom, o elogiado compositor Felipe Cordeiro, o mestre da guitarrada Pio Lobato e, por fim, o show delicado de Fernanda Takai em turnê solo.

A hegemonia de Gaby Amarantos



"Treme, treme, treme, sai do chão, sai do chão, sai do chão." Sob o céu límpido de Belém do Pará, as construções bucólicas da cidade velha e o calor inclemente que dominou os quatro dias de programação do Conexão Vivo, essa frase foi o hino oficial do público ao saudar a atração mais esperada do festival: a diva do tecnobrega Gaby Amarantos, que, com sua voz poderosa, referências culturais desbragadamente miscigenadas e domínio de palco impressionante, transformou o festival em uma celebração da cultura popular das aparelhagens e da mistura entre pop, brega, elementos regionais e a transformação de baixo para cima de uma cultura musical que não depende mais da indústria para sobreviver e se multiplicar.

Empostando a voz com segurança em alcances muito elevados e trazendo sua habitual coreografia energética, Gaby subiu ao palco com a plateia na mão, apresentando ao público clássicos do tecnobrega e hits de sua carreira, transformando o festival em uma mini aparelhagem do treme treme. Normalmente é exagero afirmar que alguém “transborda” paixão pelo próprio trabalho, mas no caso de Gaby a caracterização é literal – a cantora se joga no chão, cria coreografias que abusam até do último fio de seus longos cabelos, comanda o público sem dificuldade alguma e comprova que seu sucesso vem da mais pura aprovação popular. Se diversas divas da cultura pop radiofônica internacional ainda estão na categoria das cantoras coxinha – Katy Perry pode cantar que quer ver o “pavão” do cara que está pegando (em um trocadilho óbvio com a palavra peacock), mas jamais teria coragem de ir até o chão jogando os quadris para frente e balançando os peitos no treme treme contagiante de dona Amarantos –, Gaby tem em seu repertório hits prontos para estourar em qualquer lugar do país. Como o show no Conexão Vivo deixou bem claro, Gaby é um furacão da música brasileira – levando uma cultura amplamente esnobada para o mainstream mais careta. E, prova da qualidade de seu beat, de sua voz e de seu repertório, faz a festa na laje em qualquer pico que chegar.

Em seu show no palco do Conexão Vivo, Gaby começou com o hit "Faz o T", homenagem à aparelhagem Treme-Terra Tupinambá, seguido pela aguardadíssima "Xirley". Mesmo com quatro dias de festival e uma programação repleta de atrações esperadas pelo público, nenhum momento foi mais representativo do que a plateia queria ouvir como a entrada de Gaby, que conseguiu um coro avassalador durante todo o seu repertório. Embora a entrada do convidado especial Marcelo Mira tenha deixado o show mais morno e sem a mesma energia, a apresentação retomou seu ritmo com a entrada debochada da Gang do Eletro, que tocaram com Gaby "Galera da Laje" e "Panamericano". Com discurso articulado, consciência de sua representatividade popular, mistura instigante de elementos do brega, do pop, da MPB, do melody e do puro pancadão e simpatia natural, Gaby conseguiu alcançar um equilíbrio particularmente difícil – conquistar um público variado como o do Conexão Vivo sem tomar a festa para si. A festa, no fim, era do povo. Transformando a vitória do artista em vitória de todos, Gaby trouxe ao Conexão Vivo um elemento de sonho – de que todos nós somos donos e transformadores da nossa música, das nossas vidas e do nosso país.

Pancadão de todos nós: um rolê pelas Aparelhagens

Por volta das 2h, seguimos Gaby Amarantos até a aparelhagem Mega Príncipe, a cerca de 20 minutos do festival. Sem perder tempo, a convidada especial foi chamada para a cabine para dar uma canja ao vivo, e o barulho do público confirmou o que todos já sabem – ao ser capaz de agradar a uma plateia exigente como a de uma aparelhagem, que demanda hits absolutos com cerca de 2 minutos de maneira intermitente, Gaby chega aos palcos com a vantagem de estar calejada. O galpão lotado da aparelhagem recebeu a cantora aos gritos, em um calor insuportável acentuado pela aglomeração. Os ouvidos pulsavam com a música, no talo, enquanto as bases eletrônicas auto-tunadas dos DJs batalhavam pela atenção do público, com hits cuspidos em uma metralhadora incessante de sonoridades das mais diversas. Em menos de 20 minutos, os DJs soltaram medleys com Mr. Catra (“Bota Um Chip na Minha Pica”), versões em português de várias músicas de Shakira, um sample de Phil Collins, "Faz um Milagre em Mim", de Regis Danese, Valesca Popozuda, Beyoncé, Tiesto e canções gospel. Do sagrado para o profano, o esquema da aparelhagem recicla antigos clássicos, cria novos contextos para samples inesperados e se apropria de toda a cultura que consegue encontrar, reprocessando influências e pegando para si essa criação democrática da mesma forma que diversas outras culturas criam suas próprias histórias a partir da reconstrução de algo pré-existente. Foi assim com o rap e com a música eletrônica, e assim é com a cultura das aparelhagens do norte do país – Gaby Amarantos não estava brincando quando afirmou “eu vou samplear, eu vou te roubar”, em uma interpretação irônica do clássico de Zé Cafofinho e suas Correntes.

Baldes de cerveja a R$ 90, casais aproveitando a noite e grupos dançando em todos os lugares, a aparelhagem pulsa com uma cultura singular que se apropria de tudo para trazer uma criação diretamente ao núcleo popular. Os medleys ultra rápidos dos DJs vão para a barraquinha de CDs ao lado da cabine, que vende a gravação da noite a R$ 5 para quem quiser ouvir de novo em casa, no trampo ou bombando no sistema de som do carro. Vamos samplear, vamos te roubar - trazendo para o palco do Conexão Vivo e para o resto do Brasil a cultura da recriação e o questionamento crescente da influência do que é imposto de cima para baixo na indústria fonográfica, Gaby Amarantos fez mais do que samplear: colocou todo mundo pra dançar em uma celebração da cultura do povo paraense que vai das aparelhagens para o mundo. E além.

tags:
 conexão vivo, gaby amarantos, belém, aparelhagem, Pará

reviews mais lidos


melhores soma

mais reviews