Fotos por André Fossati, Netun Lima e Eugenio Savio – veja mais no
A pressão sobre os MCs é pesada: Monge, mestre de cerimônias do Duelo de MCs, conta os último quatro beats de cada compasso e bate no ombro do rapper que estiver rimando – ele passa a palavra automaticamente, e o desafiante tem que seguir com seu flow sem pausas. Assistindo ao caldeirão do duelo do bate e volta – uma das diferentes modalidades apresentadas pelo já tradicional (desde 2007) Duelo de MCs – centenas de pessoas gritam, batem palmas, erguem as mãos para votar, bebem sua cerveja, trocam ideia.
O Duelo já faz parte do imaginário cultural de Belo Horizonte, e acontece todas as sextas-feiras na parte de baixo do Viaduto Santa Tereza , a uma quadra do Parque Municipal, onde foi realizada a segunda etapa da perna belorizontina do Conexão Vivo 2012. O que os dois eventos têm em comum (além do fato de a Família de Rua, responsável pela organização da batalha, participar há pelo menos dois anos do Conexão) é a ideia de que a música brasileira pode ser cada vez mais plural, diversa e acessível.
A Soma viajou para BH a convite do festival – que, depois de uma etapa no Palácio das Artes, ainda conta com dois dias de shows na Praça do Papa, com Ilê Ayê, Metaleiras da Amazônia e Orkestra Rumpillez, entre outros – para a segunda fase do evento, e conta um pouco das impressões dessa tentativa de mapear a nova-velha música brasileira abaixo.
Quinta-feira . 17
A noite fria – para os padrões mineiros – começou sem muito brilho com um arranjo frouxo para a versão de Eumir Deodato para “Also Sprach Zarathustra” cometido na abertura do show da Mercúrio578, e seguiu ladeira abaixo com o “experimentalismo” joga-um-barulho-e-uma-poesia-aí dos convidados do Bahamut. Conclusão: a cena de rock de Belo Horizonte precisa de um direcionamento. Ou pelo menos de uma banda boa.
A perspectiva da noite melhorou – aqueceu – com os maxixes, choros, sambas de gafieira e outros ritmos brasileiros da primeira metade do século passado executados com precisão e um pouquinho assim de modernidades pelo combo mineiro Senta a Pua!. Na sequência foi a vez do quarteto roqueiro-instrumental de Sabará, interior de Minas Gerais, 4Instrumental (imaginação na hora de nomear a sua banda é tudo), que apesar das boas intenções, acredita demais nos clichês com os quais articula seu som. Se faltou imaginação, ao menos o grupo adiantou o tom do show de Criolo, ao protestar contra a desocupação do terreno Elaine Silva.
Com o maior público dos quatro dias presenciados pela Soma – mais de 5 mil pessoas – Criolo subiu ao palco ao som de ”Mariô”, faixa de co-autoria de Kiko Dinucci de seu segundo álbum, (e top 20 2011 da Soma), Nó na Orelha. O refrão “ Ogum, adjoe mariô” reverberava pela plateia, que cantaria durante o show todos os refrões do disco em coro. Com bom tempo de estrada, a banda de “apoio” do cantor segue cada vez mais precisa e afiada, recriando musicalmente a contraparte “doida” que, ao menos no palco, o MC do Grajaú (zonal sul de SP) segue ainda à risca. Dançando com abandono e fazendo as caras e bocas que o consagraram como grande mestre de cerimônias da Rinha dos MCs, o rapper carrega a plateia na mão, sempre com o inestimável auxílio do DJ Dan Dan.
Lá pelo final de “Sucrilhos”, Criolo canta: “Criolo Doido não é garapa/ Ideia é rápida mas EMICIDA! Como vocês prendem o menino?”. O público reagiu em apoio, gritando o nome de Emicida em vários momentos da apresentação. Mais tarde, Criolo voltou a protestar contra a prisão do rapper: "Como fazer isso com um cara que acorda todo dia e se entrega de corpo e alma para a coisa que ele mais ama na vida, o rap", e "e pra quem fica dizendo que agora o rap tá na moda: amigo, não é o rap que tá na moda, você que tava por fora do bagulho mais louco que tem. Olha isso aqui (aponta para o público de mais de 5 mil pessoas lotando o Parque Municipal) - isso é uma conquista".
Depois o cantor volta a puxar um coro de “E.M.I.C.I.D.A.” durante um par de sons, enquanto pede salves da plateia para nomes como RZO, Facção Central e Racionais MCs. A popularidade de Criolo cresce a cada dia, e em Belo Horizonte parece cortar uma fatia significativa do público jovem para além de estereótipos como “rappers” ou “roqueiros”. Destaque também para a quantidade significativa de garotas na plateia, que fazem o coro de faixas como “Freguês da Meia-Noite” soar bem mais feminino.
Sexta-feira . 18
A Soma sacrificou os primeiros shows da noite para acompanhar o Duelo de MCs descrito no início deste texto. Uma das características mais interessantes do Duelo é que ele não é apenas uma batalha: conta ainda com rodas de break, espaço para o skate e um pocket show – desta vez protagonizado pelo MC Toi, de Uberaba – entre outras surpresas. Destaque, entre vários concorrentes, para o rapper FBC, que, ainda reverberando a prisão de Emicida, abriu seu improviso provocando: “quem aqui não gosta da polícia ergue a mão”. A resposta foi praticamente unânime.
Chegando no último som do show do paraense Felipe Cordeiro – que parecia muito bom, aliás – seguimos direto para a apresentação do carioca BNegão, que entra em nova turnê com o álbum Sintoniza Lá, novo disco ao lado dos Seletores de Frequência, nove anos após Enxugando Gelo. O grupo segue tão afiado quanto estava em turnê em 2003/ 2004, apesar de alguns problemas técnicos no som.
O repertório do novo disco aparece aos poucos – percussivamente mais africano, com ritmos mais alquebrados – enquanto a plateia, ainda em grande número, entoa as faixas do primeiro álbum, de “A Verdadeira Dança do Patinho” a “Dorobo”. Com um atraso significativo na programação do segundo dia de festival, Bernardo e seus asseclas deixam o palco em o que parece ser menos de uma hora de apresentação, mas a reação do público convence a produção a liberar o grupo para um longo bis, que incluiu uma homenagem a cinco mestres do hip hop: primeiro MCA com "Root Down" + "Funk Até o Caroço", e depois num medley que incluiu Sabotage ("Um Bom Lugar"), Speed ("Macaco Quer Banana"), Skunk ("Legalize Já") e Chico Science ("A Praieira").
Sábado . 19
Concorrendo com a final de um festival de rangos de bares (com shows de Nando Reis e Monobloco) e a primeira apresentação em Belo Horizonte da nova turnê do Los Hermanos, o terceiro dia da segunda etapa do Conexão Vivo, se não tinha um público absurdo, ainda conseguiu reunir um bom quórum durante a noite.
A pernambucana Banda de Joseph Tourton abriu os trabalhos com seu som instrumental fluido, sem muita certeza a qual gênero pertencia. Se isso soa como uma boa promessa de uma unidade fluida, que poderia ultrapassar com facilidade barreiras sônicas, ao final ainda soa como uma promessa melhor que a execução. A dinâmica entre os integrantes é o ponto forte do grupo, e o repertório de variações é interessante, mas ainda falta certa coesão autoral que, quem sabe, só a estrada e alguma maturidade trará.
Com elegância, de vestido vermelho, a paraense Juliana Sinimbú pôs o público a bailar ao som de carimbós, bregas e arrochas. Com um carisma inegável, Juliana conquista aos poucos seu espaço como nome inconteste da nova geração do Pará. Na sequência, o quinteto brasiliense-paraense Soatá apresentou seu roque com ritmos amazônicos e nortistas. Ancorado pela poderosa voz de Ellen Oléria, um furacão no palco, o grupo por um lado peca pelo excesso de riffs distorcidos e pesados (seria isso uma herança maldita da Nação Zumbi?) na procura de seu rock híbrido, parecendo não desconfiar que o caminho pode ser mais suave. Ainda assim, impressionam até o último momento, voltando ao palco para um bis ao som do punk rock “Anarquiá”.
Mais feliz ainda na fusão de ritmos é o Baiana System, misturando baixo e DJ com guitarra baiana e percussão e fazendo a ponte negro-atlântica entre Salvador e Kingston. Além do sorriso e da presença de palco do vocalista e líder Russo, o grupo ainda contou com a ilustre participação de Lazzo Matumbi, um dos pioneiros na fusão entre os ritmos afro-baianos e jamaicanos. Ainda no terreiro da Bahia, Magary Lord – tendo Peu Meurray como convidado – fechou a noite trazendo um pouco do carnaval soteropolitano ao frio belorizontino, com seu hit menor “Inventando Moda” (do refrão “colá de negão/ luva na mão/ do jeito Michael Jackson) e sua fusão de batuques locais com a guitarra da África Ocidental e elementos do soul/ R&b norte-americano dos anos 70 e 80.
Domingo . 20
O último dia do festival começa no clima “fim de semana no parque”, com entrada gratuita até às 18h e famílias circulando por todo o espaço. Abrindo a tarde, a Família de Rua apresenta O Som Que Vem das Ruas, um combinado de mais de uma dezena de MCs locais que se apresentam com frequência no Duelo dos MCs, cada um cantando um som. Com flows milimétricos e boa dinâmica entre os integrantes, conseguiram superar os problemas nos microfones e angariaram um bom público durante a apresentação. Por outro lado, ainda falta personalidade nas rimas dos MCs – sabe como é, rimar sobre a arte de rimar não leva ninguém muito longe –, mas nomes de destaque como Douglas Din e Fabrício FBC prometem, aos poucos, uma mudança desse panorama.
Enquanto a tarde caía, os baianos d’O Círculo faziam uma demonstração prática de como o rock no Brasil vai mal. Utilizando modelos superados de “pop nacional” como Jota Quest e Cidade Negra como inspiração, o quinteto faz um som de pouca expressão e nenhum impacto. Já o Aeromoças e Tenistas Russas, quarteto instrumental do interior de SP, ganha pontos quando foge do rock e substitui a guitarra pelo saxofone, caindo num groove elástico que aponta bons rumos para a banda.
Os gaúchos do Apanhador Só ficam com a sequência, com guitarras altas e aquela já conhecida boa dose de losermanismo. Seria interessante ver o grupo se inspirar nos hermanos para fugir mais ainda dos clichês camelísticos, aproveitando mais as fusões de ritmos (que tal uma vanera ou uma polca?) e abraçando a colonagem poética já explícita em temas como “Nescafé” e “Pouco Importa”. A baiana Manuela Rodrigues, por sua vez, é o tipo de artista que faz aquela galera que só reclama sempre poder chegar à conclusão de que, definitivamente, a MPB vai de mal a pior. Apesar da voz bela, o repertório morno acaba deixando o show em banho-maria.
Os paulistanos do Garotas Suecas são um exemplo de retromania nacional interessante. Integrantes de uma geração que cresceu preenchendo via MP3 os buracos das discotecas de vinil de seus próprios pais. No final, soam como um Roberto Carlos fase 68-72 que substituísse feeling por conhecimento de colecionador de discos. Funciona bem com a Carrie Bradshaw e com quem só quer dançar na Talco Bells, funciona não tão bem para quem já tem os vinis originais. Fechando o balaio, os igualmente paulistanos do Bixiga 70 caem numa armadilha semelhante: são excelentes músicos, tocam com desenvoltura e fazem bons arranjos. Mas ao aceitarem o desafio desse incorporar às fileiras do afrobeat, parecem ignorar fatos clássicos da biografia do inventor do “gênero de um homem só” Fela Kuti, que, por exemplo, se casou de uma única vez com 27 mulheres. Fazer um “afrobeat” sem “pressão” e sem o mesmo tesão – para não se falar na política – de Fela é a garantia de que a carreira do grupo pode não transcender a esfera do cool paulistano, o que seria uma pena.
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