Mental Surf

Psilosamples

Desmonta, 2012

 

POR Mateus Potumati publicado em 06.02.2012

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A música eletrônica no Brasil tem uma história própria e rica, um mercado razoavelmente estabelecido e nomes de respeito internacional. Por outro lado, é um tanto bissexta no aspecto criativo: grandes nomes pipocam aqui e ali de tempos em tempos, mas no geral a cena se mantém do circuito de clubes e sub-nichos estabelecidos, onde normalmente há pouco espaço ou vontade de experimentar. Entre os nomes mais famosos, há vários DJs e produtores tecnicamente brilhantes e fluentes nas tradições do gênero, mas ainda assim é difícil encontrar uma “assinatura brasileira”, que identifique imediatamente o som como produzido no nosso país.

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, um dos produtores mais interessantes surgidos por aqui nos últimos anos, poderia ter nascido em Berlim ou em Praga. são pupilos da escola francesa. O já veterano , que ficou famoso no começo dos 2000 por samplear baterias de escola de samba, na prática apenas encaixava batidas dentro de uma estrutura clássica do techno. No caso de DJs mais imediatamente associados ao Brasil, como , e (este, pelas incursões no funk carioca), as intervenções se dão mais em termos de colorações, samples, climas e timbres pontuais do que em desafios diretos à forma.
 
Na verdade, evitar soar derivativo nunca pareceu ser uma preocupação dos DJs locais – na maior parte dos casos, a intenção parece ser justamente a oposta: quanto mais fielmente encaixado dentro de um estilo, melhor. O rápido esgotamento criativo da fusão entre drum’n’bass e MPB nos anos 1990 não contribuiu para estimular mais aventuras nesse sentido.
 
E então, entramos na segunda década do século XXI. Na eletrônica, o minimalismo e o maximalismo experimentam uma convivência pacífica e inédita, que abriga espaço para a introspecção espacial e muito anglo-saxônica (apesar das raízes chilenas) de Nicolas Jaar e para a extravagância antropofágica do Gang Gang Dance. O rap e o R&B completam bons 15 anos como gêneros mais populares do planeta, enquanto no Brasil uma nova geração de MCs escreve um dos capítulos mais interessantes da trajetória do hip-hop no país. Depois do funk carioca na década passada, agora foi a vez de a sanfona de Michel Teló explodir no mundo, para desgosto dos “arautos da qualidade” de plantão nestes Tristes (para eles, claro) Trópicos. A indústria de games suplantou a do cinema e estendeu as mãos à música, sua prima pobre, que encontrou algum alívio nos Rock Band da vida. A internet, apesar das ameaças de SOPAs e ACTAs, oferece um volume de informações sobre nosso presente e passado nunca imaginado pelo bibliotecário mais megalomaníaco de 15 anos atrás. E, no entanto, a se julgar pela grande maioria das produções eletrônicas locais, ninguém se deu conta disso por aqui. Menos o Zé Rolê, aka .
 



O trabalho do produtor de Pouso Alegre, no Sul de Minas, não só entende e processa todos esses fatores, como vai além deles, atingindo em Mental Surf um senso de direção raro nos dias de hoje, que une tino curatorial ao talento imprescindível do artista. Isso já estava bem delineado no insano projeto , de 2008, em que Zé Rolê desconstruía o tema do seriado Chaves em cinco tracks. A fixação pela cultura pop trash via Youtube, já naquela época, incorporava o mesmo zeitgeist que afetava caras então iniciantes como Nico Muhly e Daniel Lopatin (Oneothrix Point Never, Sunsetcorp etc.), especialmente no que diz respeito à relação com a cultura de Internet. Para emprestar um argumento de Simon Reynolds, os três respondiam à mesma mudança macro-cultural: a consolidação da web como “domínio do sublime”. Para o crítico inglês, a Internet ocupa, em certo ramo da composição eletrônica deste século, o lugar que foi da Natureza na imaginação do compositor dos séculos XVIII e XIX, e da cidade na do compositor do século XX.
 
No caso do Psilosamples, há ainda um elemento distinto e tipicamente brasileiro (, mais precisamente) na equação: um senso de humor moleque, zombeteiro, que confere uma leveza bem vinda ao estigma outrora sisudo da IDM e permite identificação imediata com um público amplo, pelo uso de referências populares. Se a conexão com a audiência pela via do humor e da ironia é algo que aparenta Zé Rolê a , a mediação utilizada pelo brasileiro é totalmente própria e nova (sim, n o v a, termo praticamente impossível de se ouvir hoje em dia). “Ovelha Negra” é uma das faixas de Mental Surf mais óbvias nesse sentido: um sample de sanfona típica gaúcha é acompanhado por um beat em ritmo de vanerão, de timbre propositalmente brega, à David Guetta, que logo cede lugar a uma batida mais encorpada, à Four Tet; em seguida, como em uma onda lisérgica, o absurdo volta mais forte em um sample do épico vídeo do “menino monstro”, que em 2006. Outras citações incluem (Chico Buarque & Os Trapalhões) e “”, de Mario Zan, tema histórico das quermesses brasileiras. No final, a sanfona é desconstruída até se tornar apenas outro acompanhamento de uma levada minimal.
 
Em “O Príncipe da Roça”, Zé Rolê lança mão ainda de outro elemento: interrupções bruscas nos beats e nos samples, criando “gagueiras” no andamento que lembram uma versão relax do drill’n’jazz de Venetian Snares. Se na prática o som dos dois vai para direções distintas, a comparação com o canadense é útil para entender o lugar do Psilosamples no contexto da eletrônica: enquanto o breakcore violento de Venetian Snares é o som do crack (droga da qual Aaron Funk era usuário assumido e que usava como inspiração para compor), Zé Rolê faz uma folktrônica da brisa e da psilocibina, festiva sem deixar de ser cerebral. O que Snares tem de desafiador e obscuro – por exemplo, ao processar samples de Bela Bartók e Billie Holiday a ponto de torná-los irreconhecíveis –, o Psilosamples tem de generoso, por vezes didático, sempre a serviço da comunhão.
 
“Bom Dia Menina Pelada!”, convenientemente, se despe do maximalismo (mas nunca do humor) para introduzir um clima mais intimista, com timbres e melodias de canções de ninar. “Meteorango Kid” retoma pistas mais preenchidas, mas sem sucumbir à ansiedade fusion dos wonky beats de Hudson Mohawke e Rustie – ambos admirados por Zé Rolê, especialmente Mohawke, cujo virtuosismo herdado do turntablism . Ao contrário, a vibe é relaxada, ora remetendo a Clube da Esquina, ora a beats de um Edan ou MF Doom. Recursos do rap, por sinal, também estão presentes em outras faixas, e é interessante fantasiar uma parceria entre Zé Rolê e algum MC brasileiro (Flow? Amiri?), algo que ele já fez no passado.

Em suas nove faixas ousadas, dementes, celebratórias e esculpidas em detalhes a cada bit, Mental Surf faz o ouvinte rir, pensar, se sentir parte e se localizar em meio à glossolalia onívora da informação destes nossos dias. E dançar, dançar com um balanço global, mas profundamente brasileiro, contemporâneo e ativo nos diálogos mais ricos realizados na música atual. A síntese, em sua melhor forma, do universo vasto e frutífero que habita o cabeção de Zé Rolê.

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 zé rolê, psilosamples, mental surf, mario zan

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