Eventos VIPs feitos por grandes marcas via de regra não vão muito além do habitual jogo do ver-e-ser-visto. E na noite da última quarta, 2, quando aconteceu a quarta edição do projeto Mixtape Multishow, muita gente foi ao Cine Joia exatamente para isso. É bem verdade que havia um punhado de pessoas animadas com o primeiro show do tUnE-yArDs no Brasil, mas também é provável que a maior parte do público fazia uma ideia entre vaga e nenhuma sobre o som da banda comandada por Merrill Garbus, uma das mais legais saídas do Nordeste dos EUA nos últimos anos (W H O K I L L, segundo disco do ensemble, ficou em 6º na nossa lista de melhores de 2011). Mas, como nos melhores ideais românticos da arte, o cenário improvável só destacou mais ainda o brilho da apresentação do grupo. Uma a uma, as músicas de Garbus foram ganhando o público, unindo fãs e neo-convertidos na pista em uma festa que espantou o frio da noite paulistana, ao mesmo tempo em que desafiava os conceitos de música pop do público.
O começo do show já deixou claro que um dos meios preferidos de Garbus para atingir esse efeito é a sutileza. Postada à frente do microfone, ela fez um "AAAA" aparentemente despretensioso, que parecia ser mero teste de som. Mas logo a cantora mostrou que nada ali era por acaso: loopeado em um pedal de efeitos simples (um Loop Station Boss RC2), o som se transformou em uma base, à qual ela foi incorporando outros vocais e batidas. Logo a polifonia de ready-mades recém-nascidos tomou forma de música, na qual camadas de vocais assombrados se alternavam à batida ritualística do surdo (um pouco prejudicada, é verdade, por o que parecia um falante rasgado no lado esquerdo do PA). Algo de dar orgulho a Pierre Schaeffer, caso nos anos da musique concrète ele e seus contemporâneos pudessem imaginar que seus procedimentos influenciariam uma cantora pop e ganhariam a atenção de uma plateia jovem dessa forma. Coisas que só 2012 pode oferecer.
O improviso no início do set é tradição nos shows do tUnE-yArDs e, contra os prognósticos de quem normalmente torce o nariz para qualquer coisa mais elaborada feita em música, teve exatamente o efeito desejado: atraiu os olhares do público, fez gente correr para a pista, o burburinho de conversa diminuir. O setlist do show foi quase totalmente concentrado em W H O K I L L, com a exceção de "Real Live Flash", de Bird Brains, disco caseiro gravado em 2009. A principal atração da apresentação sem dúvida é a versatilidade de Merrill Garbus, que produz todos os beats e loops do disco na hora: além do pedal e do surdo, ela usa ainda um sintetizador MicroKorg, uma caixa e um ukulele, mais toda sorte de found sounds, de baquetadas no pedestal a vozes processadas ao vivo (algumas delas via MicroKorg, outras cantadas no captador do ukulele). Como se não bastasse o "se vira nos 30" de one-woman-band, ela também sabe explorar a voz privilegiada com propriedade, variando entre vocais suaves de menina, gritos rasgados (e muito masculinos) de hardcore, alcances vocais de cantora soul e sons guturais dignos de uma aluna de Phil Minton.
Mas a banda também está à altura, seja no baixo e nos vocais de apoio de Nate Brenner, seja no naipe de sopros. O groove e as linhas tortas de Brenner, adicionadas às dissonâncias free-jazz dos metais, criam uma atmosfera que remete aos melhores momentos de X-Ray Spex e Lora Logic (e arrancava sorrisos de Luiz Chagas, ex-guitarrista da banda Isca de Polícia, que curtiu o show perto do palco com a filha, a cantora Tulipa Ruiz). De fato, Garbus se mostrou à vontade em frequências mais punks, a ponto de se jogar em um crowd surfing em braços provavelmente pouco acostumados aos rituais do hardcore. Mas isso só fortaleceu ainda mais um laço que ela plantou e cultivou com o público desde o começo do show.
O clima de amor e redenção pela dança deu o tom para o restante da noite, comandada por João Brasil, espécie de híbrido entre um Girl Talk com beats brasileiros e um Luiz Schiavon do MPC. Farofagens à parte, fazer o baile inteiro cantar "Nosso Sonho", do Claudinho e Buchecha, já valeu a noite.
Setlist completo do tUnE-yArDs:
(Improvisação)
You Yes You
Gangsta
Esso
Riotriot
Powa
Killa
Real Live Flesh
Doorstep
Bizness
My Country
Party Can