Artistas e grupos com extensas discografias sofrem com a chamada síndrome de Roberto Carlos, e muitas vezes é um trabalho hercúleo identificar o trigo e o joio ao longo de duas ou três (ou mais!) décadas de produção. Clássicos são clássicos, e são indiscutivelmente celebrados. Há também as podreiras, obviamente em (muito) menor número.
E existem ainda aqueles discos que classificaremos como limbo records, objeto temporário de nossa análise; sabidamente interessantes e quiçá clássicas, estas pérolas são frequentemente esquecidas, subestimadas ou inferiorizadas ante os notórios hits dos respectivos artistas. Pois Up Pops, do pianista e compositor Ramsey Lewis, e Up For The Down Stroke, da rapaziada do Parliament, são ótimos exemplos dessa saudável síndrome, explicitada aqui até mesmo através dos nomes dos álbuns. Conheça, portanto, um pouco mais a respeito dos discos e dos artistas.
Ramsey Lewis . Up Pops . Cadet, 1968
Para o legendário pianista e compositor Ramsey Lewis, os altos e (nem tão) baixos de uma longa e inventiva carreira, e de sua própria discografia, sempre foram uma constante. 1968, o ano de lançamento de Up Pops (Cadet), marca uma mudança crucial para a sonoridade da música de Lewis: a saída dos dois homens-fortes de seu power trio, Eldee Young e Redd Holt (a.k.a. Young & Holt, que vieram a lançar alguns bons discos de soul jazz na sequência, como uma livre interpretação para o clássico “Superfly”, de Curtis Mayfield, no início dos anos 70), responsáveis, entre outras coisas, pela conquista de um punhado de grammys entre 65 e 66. Os grammys vieram em função das absurdas versões do então veterano Ramsey Lewis Trio para os clássicos “The In Crowd” (65), “Hang On Sloppy” e “Wade In The Water” (66). Gravando pela Cadet, subsidiária da mitológica Chess Records (onde gravou até 1972), RL contou com outra esplendorosa formação para a gravação deste polêmico Up Pops, de 1968; o jovem e brilhante Maurice White, responsável pela bateria e pela percussão aqui, deixou Lewis em 70 para formar nada menos do que o Earth, Wind & Fire.
Curiosamente, Up Pops não é tão celebrado pela tal mídia especializada como outros dos álbuns de Ramsey à época. Cheio de versões e trilhas de filmes, marcas registradas do som (instrumental) do artista, o LP é rico em arranjos – todos concebidos pelo pianista, e a presença de Maurice “EWF” White torna a percussão de Up Pops algo absolutamente genial. Festeiro como boa parte do material lançado por Lewis no período, o disco é um convite à dança. Fãs de soul music e R&B podem se deleitar de ponta a ponta; com a exceção das babas “The Look of Love” (clássica nas delicadas vozes dos Delfonics) e “Alfie”, as outras faixas do play são micro-cosmos de uma animada festa, ca- pazes de fazer com que sua tia-avó largue o andador por dois ou três minutos para sacolejar ao som de Ramsey. Um dos artistas mais sampleados do universo soul-jazz, RL mostra o fino de sua produção nas excelentes “Soul Man”, “Respect”, “Going Out of My Head” e “Party Time” – nome adequado ao estilo do artista. Ao julgar pela direção de arte da capa do LP, este subestimado álbum de Ramsey Lewis pode se transformar na caixa de surpresas proposta por ele. Vá atrás!
Parliament . Up For The Down Stroke . Casablanca, 1974
Embora muito mais um UP que um DOWN (se é que há algum momento abaixo da crítica por aqui) quando o assunto é a discografia do Parliament, Up For The Down Stroke sofre da síndrome do irmão mais velho que vê o caçula se formar com méritos em Harvard, pegar a Gisele Bundchen e formar uma empresa .com avaliada em um bilhão de dólares aos 25 anos. O caçula aqui se chama Mothership Connec- tion, obra-prima do Parliament, a única razão pela qual Up For The (...) nunca será a referência imediata da música do combo liderado pelo folclórico George Clinton. O que obviamente não chega a ser um problema. Pois Up For The (...), segundo disco dos bufões do soul-funk/R&B do Parliament – e primeiro, caso a lista leve em conta apenas LPs rele- vantes – apresenta o grupo em estado ainda relativamente bruto, razão pela qual o som é tão orgânico e intuitivo, além de versátil, ao longo de suas oito faixas. A possível participação dos Horny Horns Maceo Parker e Fred Wesley é questionada em função de não haver crédito aos metais no encarte do LP, mas o trio de ferro formado por Bernie Worrell (te- clados), Bootsy Collins (baixo) e Eddie Hazel (guitarra) dá conta do recado. Musicalmente, o Parliament facilita as coisas em relação à sonoridade de outro projeto de George Clinton, o (também genial) Funkadelic.
E basta um par de audições do LP em questão para que clássicos como a própria faixa-título, “Up For The Down Stroke”, além das sublimes “Testify”, “The Goose” e “All Your Goodies Are Gone” saltem ao mais exigente dos tímpanos. Longas, experimentais, cheias de distorções e efeitos, embora absolutamente funky, com arranjos perfeitos e delicadamente harmônicos, o som do Parliament – e especificamente deste LP – ajudou a definir o caminho trilhado pelo funk ao longo da segunda metade da década de 70, influenciando artistas, bandas e até mesmo outros gêneros, além de estimular cada vez mais o crossover entre estilos. O perfil visionário de George Clinton, que já demonstrava estar tão interessado nos louros da fama quanto em mulheres lisérgicas em 74, transformou o Parliament numa espécie de lenda musical dos anos 70. Conceitualmente, o discurso “viemos de Saturno, usamos botas e roupas cibernéticas, fazemos jams de mais de 15 minutos e tomamos LSD de café da manhã” diferenciou este de outros combos funk da primeira metade da década, e o próprio rumo musical da banda acabou rompendo os limites do R&B, do funk ou mesmo da tal black music, possibilitando a futura criação de clássicos como Mothership Connection (76). Sorte a nossa. E ponto para o Parliament!