Galeria Tunga . 'Palindromo Incesto' POR Divulgação
Um dos legados mais importantes da arte no século XX foi confundir de forma irreversível as fronteiras entre suportes e gêneros. Com isso, os artistas contemporâneos passaram a se valer de materiais e até mesmo disciplinas distintas para criar uma obra ou um conjunto de obras, que não raro dialogam entre si. Nesse sentido, Tunga é um artista contemporâneo por excelência. Se boa parte do seu trabalho é dedicada a repensar o conceito de escultura, ele o fez se valendo de recursos variados como ready-mades, filmes, instalações, textos e desenhos. Seu objetivo, segundo declarou ao crítico Carlos Basualdo, foi produzir um conjunto de trabalhos “onde um sempre leva ao outro, como se entre eles existisse um ímã”. Em entrevista para a Vice, ele completou: “Somos fragmentados por natureza. Então essa vontade de religar, de criar mecanismos, conjunções que atravessem linguagens faz parte do meu modo de viver e, portanto, do meu trabalho”.
Na galeria exclusiva (e permanente) que ele agora ganha em Inhotim, esse pensamento foi levado a cabo com um gigantismo digno de um Anish Kapoor – senão nas proporções das peças em si, certamente nas do organismo que criou. O projeto não se encerra nas artes expostas dentro da galeria, nem no grande anel em seu centro, mas se expande para o enorme prédio de 2800 m² e inclui até uma grande zona de mata no seu entorno. Com esse conjunto, Tunga, que também tem formação de arquiteto, busca inspiração na capacidade da natureza em gerar vida – o que ele chama “mistério da mata” – para inspirar os visitantes a criarem novas leituras de suas obras. “Como artista, a gente cria minuciosamente cada detalhe e parece que sabe tudo”, ele diz. “Aí você expõe e se surpreende por que [suas obras] começam a gerar significados novos, animais novos, insetos novos.” Explore um pouco mais da “floresta mental” do artista na entrevista a seguir.
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Tunga em Inhotim (2012). Por Fernando Martins Ferreira
Como você concebeu o projeto deste espaço?
No Rio existe um túnel pelo qual eu passo quase diariamente para chegar em casa. Esse túnel tem uma curva de 30º, e um dia me ocorreu a ideia de ficar preso dentro dessa curva. Surgiu então uma instalação minha chamada Ão, que é uma película rodada, com foto do Murilo Salles. Por que Ão? Ão é um som muito característico da língua portuguesa, mas também remete ao Om, eu é uma sonoridade utilizada para se entrar em um estado mental de transe. Nesse trabalho eu quis explorar a experiência de perder a temporalidade no interior de um túnel. O estado mental do Om está além da temporalidade, está em outra temporalidade, da mesma natureza que a temporalidade que está aqui [neste espaço].
Me ocorreu fazer uma ligação entre o começo dessa curva e o fim dessa curva, fazendo assim o que se chama, em topologia, de toro, que nada mais é do que um anel. Essa instalação foi colocada no centro do prédio. No programa arquitetônico, a ideia é que essa instalação, que foi talvez originária nessa série de obras, ficasse como um núcleo central, o lugar de onde emanam as coisas.
Em torno dessa experiência de temporalidade diversa, contínua e circular giram outras obras, que também estão impregnadas dessa natureza. Desse modo, se construiu um prédio que tem uma circularidade no modo de se percorrê-lo. Um prédio não é apenas um teto e quatro colunas, ele está postado em um lugar. E que lugar é esse? Esse lugar é um jardim, que, ao contrário dos outros jardins de Inhotim, que são vários e belíssimos, é um jardim seminal.
Tentamos criar um cinturão de mata da floresta originária daqui, uma floresta secundária que iria representar a floresta primária daqui. Desse modo, temos o primeiro anel que circunda o prédio, que é uma mata refeita pelo homem. Esse movimento de aprender a refazer a mata como ela era, e depois ela cresce e revela o mistério da mata, é mais ou menos a metáfora de cada uma dessas obras.
Tunga em Inhotim (2012). Por Fernando Martins Ferreira
Por que você escolheu reflorestar o entorno da Galeria?
No século XIX, [no Rio,] foi reflorestada essa imensa área que hoje é Floresta da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo. Foi a primeira vez no mundo em que se reflorestou. E eu me perguntei: será que o jardim brasileiro, em vez da excelência do Burle Marx, não será a floresta refeita? Refazer a floresta não significa que a gente conheça a floresta, significa que a gente tem técnica capaz de criar algo originário. O que me interessa são as origens, não identidades. Criar o originário é recriar a possibilidade de o desconhecido reaparecer. Foi esse o sentido que eu quis dar a esta mata, de refazer o jardim originário, que há de trazer à luz todos os mistérios que o jardim tem.
Como artista, a gente acha cria minuciosamente cada detalhe e parece que sabe tudo. Uma vez que a obra está pronta a gente diz “eu sei o que estou fazendo”. Aí você expõe e se surpreende porque ela começa a gerar significados novos, animais novos, insetos novos. Essa ideia é a ideia de apresentar ao público, numa mata, uma floresta mental, de ideias que serão enriquecidas à medida que o público as experimenta.
Uma obra de arte feita na solidão é uma coisa, uma obra oferecida ao público como Inhotim oferece é uma riqueza que traz riqueza à arte, a quem as experimenta e constrói possibilidades novas de a gente viver, expande nosso campo existencial.
Alguns contemporâneos mais atuais focam bastante na questão referencial – certas obras de caras como Rikrit Tiravanija ou Plamen Dejanov são praticamente reconstruções de obras de outros artistas. Uma instalação sua como esta À Luz de Dois Mundos se utiliza de ready-mades, mas o lado experimental se sobressai à questão da referência.
Tunga à frente de sua obra À Luz de Dois Mundos, que foi exposta no Louvre. Por Fernando Martins Ferreira
Um ponto que sempre me inquietou, e estamos diante de uma obra que foi quase um teorema a respeito pra mim, é que as hegemonias culturais historicamente se dissolvem em estruturas arcaicas. Acho que essas obras que você menciona talvez sejam a casca mais externa da cebola, mas a cebola é a mesma. Se você descascar a referência, vai acabar encontrando uma estrutura que é mesma de coisas que hoje nos parecem “antigas”. Acho que a atualidade da arte é a capacidade de se renovar, se representar em face de condições diversas. Quando essa obra foi construída, haviam me convidado a expor no museu do Louvre, e a posição dessa obra era justamente embaixo da pirâmide, um lugar que divide as alas, um tesouro de coisas de várias culturas diferentes. Me inquietei em pensá-la de forma que quem fosse se confrontar com essa obra não precisasse ter referências culturais precisas. Um pouco mais que isso: que se perdesse nessas referências culturais. Então a presença das cabeças – são cabeças de diversas áreas do Louvre, representando civilizações diferentes – é uma espécie de loteria, de mistura do arcaico com o contemporâneo. Esse é um dos elementos plurais que a arte contemporânea deve, pode e é frutuoso a gente explorar.
Me parece também que a preocupação em discutir formatos às vezes envereda por uma via mais curatorial (e publicitária) do que propriamente artística. Você acredita que, como brasileiro, representante de uma tradição paralela, tem uma contribuição diferente a essa discussão?
Primeiro, eu não me identifico como artista brasileiro. Me identifico como artista, ponto. A noção de nação tem sido muito prejudicial ao mundo em geral. Por isso eu estava falando [a outra jornalista] que a noção de origens me parece mais adequada. Um segundo ponto talvez seja que toda arte é bem vinda. A atitude de ver o mundo, produzir, de reagir à vida de uma forma não ortodoxa, de uma forma poética, nos aproxima mais ao humano, a uma integração do imaginário do sonho, com o simbólico, com o real e nossas experiências.
Essas pequenas tendências, que hoje são tão disputadas e tão presentes em exposições, acho que são fenômenos históricos pontuais, por que daqui a algum tempo a gente embaralha isso tudo e você vai ver expoentes mais concisos de tendências diferentes que vão se irmanar e formar aquilo que é a contemporaneidade.
Eu trato de introjetar essa atitude no meu trabalho e no meu modo de pensar, buscando modos de expressão os mais diversos. Do cinema à escritura, de um pequeno caos a uma coisa extremamente ordenada, de materiais e linguagens diferentes. Ou seja, colocar esse sujeito explodido que o modernismo apontou na descontinuidade do cubismo como uma totalidade, continuidade, é uma tarefa que se tornou clara. Pensar que a modernidade fundada no cubismo, na descontinuidade do sujeito, e na vontade de congregação dessa continuidade numa coisa única, pode ser uma atitude perante a vida. Nós somos sozinhos e uma multidão ao mesmo tempo. Quando eu dou um passo, não é só um passo, são vários dando passos, e eu acho que é isso que forma o artista.
True Rouge de Tunga: Inhotim começou aqui. Por Fernando Martins Ferreira