Quem vê pela primeira vez a faca vermelho-sangue, com um nome italiano vazado em caligrafia sinuosa – releitura clara da logotipia de filmes como O Poderoso Chefão –, pode pensar que se trata de uma nova série sobre a Máfia, ou de uma trattoria siciliana onde é prudente não reclamar com o garçom. A percepção não é de todo errada: a Famiglia Baglione tem um pouco de organização mafiosa e de gastronomia. “Todo encontro nosso tem que envolver comida”, explica William Baglione, enquanto serve uma mesa com quitutes de padaria. Mas, aqui, os dois são meios para atingir outro fim: gerenciar a carreira de alguns dos nomes mais importantes da arte urbana brasileira. Em seis anos de existência, já passaram pela Famiglia Baglione artistas como Nunca, Tinho, Thais Beltrame, Flavio Samelo e Pato. Hoje, o grupo conta com Herbert Baglione, Flip, Sesper (os mais antigos de casa) e os “recém-iniciados” Fabio Stachi, Adalberto Rossette, Rafael Ruiz “Buia” e Sergio Lopes “Slop”.
A fixação com a Máfia siciliana vai além de mera referência estilística: William é um aficionado pelo tema. “Não partilho da violência, é claro, mas gosto da estrutura e da forma de gerenciamento”, ele explica, revelando que já viu todas as séries, filmes e leu vários livros sobre o assunto. “Aprendi muito a valorizar os encontros pessoais, a unir pessoas de famílias diferentes em torno de outra família. A comida faz parte disso, é um elemento de união.” Herbert complementa: “O que diferencia a gente de uma galeria normal é que a relação numa galeria é profissional, às vezes o artista nem gosta do galerista. Aqui nossa ligação é diferente, todos esses laços vêm antes da arte.”
Obviamente, nem tudo na Famiglia é inspirado na Sicília. Se o trabalho do grupo despontou nos últimos anos, isso se deve a uma visão artística privilegiada. Criados no Parque São Lucas, Zona Leste de São Paulo, os irmãos Baglione viram o surgimento do graffiti e do skate no bairro, além de acompanharem a prolífica cena estêncil de São Caetano dos anos 80. Também foi fundamental na formação dos dois a Escola Técnica Walter Belian, na Mooca. “Lá a gente teve conexão com arte, ilustração, mecânica, marcenaria. O Herbert teve contato logo cedo com os melhores ecolines, o melhor nanquim, o melhor papel alemão, os melhores pincéis.” William, por seu turno, sempre foi um “artista de ver”, como ele mesmo define. A relação de companheirismo entre os dois se desenrolou de forma complementar: Herbert desenhava e William absorvia e filtrava o que eles viam juntos. “Eu sempre li muito e divido tudo com o Herbert. Muitas ideias saíram dessas conversas.”
Nos anos 90, as coisas viraram. O pai perdeu o emprego e os dois acabaram saindo da escola. Outra desilusão veio em seguida, quando uma pasta com modelos de tênis criados por Herbert (então com 12 anos) foi extraviada dentro de uma fábrica de calçados. Tempos depois, a família se chocou ao ver vários modelos iguais aos de Herbert no mercado. “As combinações eram idênticas e não existiam no Brasil. Não tinha como ser coincidência”, ele explica. Essas experiências negativas, porém, levaram William a se engajar mais diretamente na vida artística do irmão. Em 94, ele conseguiu emprego num banco. “Eu não conhecia nada desse mercado, mas levava os desenhos dele sempre comigo e mostrava às pessoas.” A insistência deu certo: naquele ano, William conseguiu o primeiro trabalho comercial para o irmão, na editora Globo.
Em 94, Herbert conheceu OsGêmeos e começou a trabalhar intensamente nas ruas (é dele a capa da primeira edição da Fiz, de 1997, revista pioneira de graffiti editada pelos irmãos Pandolfo). William ajudava no que podia: carregando coisas, fazendo cobranças, resolvendo questões burocráticas. Nesse período, surgiam no país projetos como Most, Lost Art e Choque Cultural. Mas ainda levaria alguns anos para que William se desse conta da oportunidade. “Demorou cinco anos pra bater o estalo: ainda não tinha ninguém por aqui que cuidava da parte burocrática.” No final de 2004, aproveitando o know-how adquirido no banco, William chamou o irmão e Nunca para fundar o embrião da Famiglia. “Pode colocar que eu sou pioneiro nisso, porque eu sou mesmo! (risos)”
Especialmente nos últimos quatro anos, a Famiglia cresceu e ganhou notoriedade no Brasil e no mundo. O sistema de organização e discussões pra lá de francas entre os membros do clã é admirado por bambas como Tristan Manco. A escolha por artistas tão diferentes também não é acaso. “Quis montar um grupo heterogêneo para que nenhum trabalho saísse pelo ralo”, revela William. Essa visão criou um portfólio que inclui atualmente mais de 50 exposições em 11 países e parcerias comerciais que vão de marcas como Oi, Evoke, Tok&Stok e Upper Playground a trabalhos em resorts de luxo e cruzeiros marítimos.
“Baglione” vem de um termo em latim que significa “carregador”. Séculos depois, na Idade Média, o termo evoluiu e passou a designar administradores feudais. De carregador a capo, William Baglione levou pouco mais de 10 anos. Tony Soprano ficaria com inveja.
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