Aos 24 anos, Luciano Scherer faz parte de uma safra de artistas brasileiros que já cresceram conectados ao mundo. Para essa geração, não faz a menor diferença se você é de Santa Vitória do Palmar, São Paulo ou Nova York. Tudo e todos estão ao alcance de um clique. No contexto dessa nova arte jovem global, vem ganhando força nos últimos anos um movimento de resgate e ressignificação de ideias da arte naïf. No Brasil, a tendência é representada por nomes como Carla Barth, Talita Hoffman, Dea Lellis e o próprio Scherer.
Em suas obras, o artista retrata um mundo estranhamente peculiar, habitado por criaturas fantásticas – seres com cabeças em formato de polígono, casas-bicho, morcegos-gato. De formação autodidata – ou auto-indicada, como ele prefere – Scherer acrescenta ao naïf influências como a pintura metafísica, a arte sacra, a arte popular e o surrealismo.
Você nasceu em Santa Vitória do Palmar, uma cidade super pequena no extremo Sul. Com quantos anos foi pra Porto Alegre?
Com uns 3 ou 4 anos, fui morar em Pelotas, cidade vizinha. Fiz até a 6ª série lá. Voltei pra Santa Vitória, conheci o skate e comecei a me “marginalizar”, digamos assim. A gente tinha uma associação de skate na frente de casa, fazia rampas, fazia corrimão, fazia várias coisas. A gente conseguia uns vídeos gringos, o que era muito difícil. Qualquer coisa era muito difícil. Mais tarde, fui pra Porto Alegre fazer faculdade. Fiz um pouco de publicidade, não gostei, fui pro design. Não gostei também. Hoje em dia, se eu voltasse atrás, não sei se faria faculdade.
Você já estava envolvido com arte ou ainda não?
Não, não. Em Santa Vitória, comecei a me interessar por graffiti. Eu fazia desenho de letras no meu caderno, mas não saiu disso. Só comecei quando fui pro design, na verdade. Virei colega do Bruno 9li, a gente saiu pra colar uns pôsteres uma noite e aí depois outra, outra, e aí começou. Foi com pôster. Foi massa.
Seu interesse pela arte então nasceu principalmente do lance de fazer coisas na rua?
No começo, sim, porque era o que estava acessível, era o que eu conhecia. Na primeira aula de história da arte, a professora perguntou “E aí, quem gosta de arte?” e eu disse “Não gosto de arte, só gosto de graffiti”. Eu achava que era uma coisa diferente da outra, que aquilo tinha uma coisa mais a ver com transgressão, com outro tipo de linguagem. Na minha cabeça, não tinha ligação com museu. Depois eu comecei a me interessar por outro tipo de arte. Não de uma maneira acadêmica, mas ainda assim pintura, escultura, instalação, vídeo, música, e aí foi abrindo um leque.
Já rolava o coletivo Upgrade do Macaco?
Sim, o Upgrade foi antes disso. Nessa época, o coletivo fazia bastante ação de rua. Foi mais o Upgrade do que o graffiti em si que me fez começar a pintar. Eles eram uma escola, um caminho do meio entre o comum – o “comum” que eu digo é pintura, escultura, institutos de artes – e a escola auto-indicada, que é o graffiti, esse pessoal que faz a sua.
E uns caras mais das antigas do Rio Grande do Sul, tipo o Jaca e o Zimbres, você conheceu mais tarde?
O Zimbres eu já conhecia quando morava em Porto Alegre, mas nem foi o que mais me influenciou. Até porque eu andava bastante no Centro e na Cidade Baixa, então eu me influenciava mais pelo que eu via na rua. Quando eu vim morar em São Paulo, comecei a trabalhar na Choque Cultural, um pouco depois da exposição do Jaca. Eu trabalhava de empacotador, meio faz-tudo. Foi lá que conheci os quadros dele e na hora já achei o cara mais foda do mundo. E um pouco depois fui vendo outras coisas do Zimbres e achando demais.
Com 24 anos, você está numa galeria respeitada de arte contemporânea em São Paulo, a Thomas Cohn. Existe um mundo que se costuma rotular como street art ou arte underground, e a partir do momento em que você entra em uma galeria tradicional, passa a fazer parte de um mercado que já existe. Antes, você estava fazendo parte de uma coisa nova, que ainda está se formando. Como se deu e como você vê essa nova fase sua?
Tudo começou com a Trimassa, em 2008, que foi uma exposição de gaúchos na Choque. Foi a primeira vez que pintei tela, expus numa sala junto com a Carla [Barth]. Aí o Thomas visitou a galeria e me chamou para uma individual. Foi a primeira pessoa que me deu uma chance. O Thomas conheceu o meu trabalho e o da Talita [Hoffmann], gostou dos dois, e eu fui lá falar com ele. Ele tem uma cabeça bem aberta, sem ir muito pro lado do conceito – [gosta] mais de uma arte que fala por si, bastante figurativa. Depois eu conheci a história, a galeria dele começou expondo Diane Arbus, depois fez Varejão, Lygia Clark. O Thomas tem uma cabeça bem aberta. A gente tá sempre conversando, trocando e-mail, ele tem um gosto bem parecido com o meu.
A transição do desenho para a pintura é um marco para muitos artistas, principalmente quando você começa a pintar com óleo. Muitos artistas da sua geração, como você, o Bruno, a Talita e a Dea [Lellis] estão partindo para a pintura, e em telas cada vez maiores. Como é isso? Esse formato é também uma exigência do mercado ou vocês mesmos estão se puxando para fazer?
Eu sempre tive dificuldade com desenho de contorno. Aí eu comecei com a tinta, e a acrílica faz todo sentido, porque eu podia consertar. E ela tem uma aparência que é outra coisa... Parece que o desenho é mais volátil. Eu fazia pôsteres grandes e pequenos com tinta acrílica, que já eram pinturas, na verdade. Eu fico nesse universo: ao mesmo tempo em que meu trabalho é pintura, ele tem bastante de desenho. Mas é um desenho que não é de contorno, eu geralmente não risco antes de pintar, já saio pintando. A mancha, o erro vão me ensinando. Meu trabalho é bastante baseado no erro, aliás.
A primeira vez que eu pintei tela foi pra Choque, fiz telas de 60 x 80 cm. Tive dificuldade pra pintar essas telas, mas sempre me senti desafiado. O tamanho maior te proporciona um entendimento maior, a possibilidade de colocar mais coisa. Eu estou indo por esse lado do maximalismo, no sentido de ter bastante coisa por centímetro quadrado. Nunca foi uma exigência, mas, como a galeria é grande, me pareceu a única solução. Hoje eu acho até melhor pra criar, tenho mais dificuldade em espaço pequeno.
Como foi essa primeira individual na Thomas?
Eu pintei por mais ou menos 14 meses. Fiz uns 13, 14 trabalhos, inclusive um bem grande, de 4,30 m por 1,60 m. E foi bastante difícil, eu exijo bastante de mim, então acabava trabalhando 7 dias por semana, às vezes 12 horas por dia. Fodi minha coluna lombar, depois a cervical. Ainda sinto dor. Mas a pintura grande me ensinou a não ter medo de errar, a fazer mais. E agora estou indo cada vez mais para uma pintura fechada, uma coisa com repetição. Me inspiro bastante em pintura flamenga. Me interessa a complexidade, é uma forma de desafio.
Acho que esse lance de não ter medo de errar vem da arte naïf, que imagino também seja uma das suas influências, junto com arte folk e sacra também. O que você acha do rótulo “neo naïf”?
Eu prefiro não rotular pra poder ir aonde eu quiser sempre, mas me interessa muito a arte naïf. Acho arte popular brasileira genial. Os caras não têm muita noção de perspectiva, mas fazem do jeito que dá. Geralmente fica estranho, e o estranhamento me interessa. Ao mesmo tempo, gosto muito de arte clássica e pintura flamenga, desenhos alquímicos, pintura de botânica, realismo, umas coisas mais complexas. Acho que eu sigo um pouco o caminho do meio entre esses dois, o naïf popular e o clássico “complexo”. Vou fazendo meio do jeito que dá, e aprendi tudo meio sozinho: errando, vendo como os outros fazem, inventando.
E você e a Carla? Por serem um casal de artistas, imagino que o trabalho e a pesquisa de cada um acaba influenciando o outro.
Com certeza. A Carla começou a se interessar pelo lado da arte sacra, que vinha de mim, e eu pelo lado da arte popular, que vinha dela. A gente se influencia e conversa muito sobre a arte, discute muito o trabalho um do outro, pede sugestões, dá dicas. Muitas vezes um não dá bola pro que o outro fala, mas a gente se influencia e se ajuda do jeito que dá.
Você, a Carla, a Talita e a Dea têm trabalhos espontâneos e com identidades próprias. Mas acho que também rola um diálogo. Você se enxerga como parte de algo maior, quase um movimento? Não estou falando de street art, mas talvez de um renascimento do naïf por uma nova geração, que bebe também em outras fontes.
Eu acho que dá pra dizer que sim. Principalmente a Carla e a Talita, porque eu comecei com elas. Mas as coisas têm se distanciado, e a tendência é essa. Quando a gente se juntava em Porto Alegre pra virar a noite pintando, respirávamos as mesmas coisas e nos influenciávamos mutuamente. Depois que saímos de lá, cada um foi adquirindo novas influências. Mas com certeza as coisas dialogam.
Religião e rituais são temas bastante presentes no seu trabalho. Você se considera um cara espiritualizado? Por que o interesse especial em retratar esse universo?
Eu fui criado em família católica, e minha mãe sempre se interessou por outras culturas e religiões. Acho que o meu trabalho tem muito dessas duas coisas. Um tempo atrás, eu diria que não tenho religião, hoje em dia acho que sou um pouco de todas, porque todas têm alguma coisa a acrescentar e buscam mais ou menos o mesmo. O que me interessa bastante nas religiões é o mistério. Toda religião tem o mistério metafísico, e todas elas constroem um imaginário muito forte. O que me interessa é o mistério e o poder das imagens.
Na série Atropelos, você pinta por cima de imagens religiosas, dando um novo significado a elas. Como surgiu essa série?
Elas não têm um conceito – dentro do meu trabalho eu não acredito que exista necessariamente um conceito. Aquelas pinturas são apropriações de pinturas religiosas, mas são uma quebra de dogma pra mim, no sentido que as imagens religiosas têm uma posição mais superior, quase amedrontadora. Então acho que foi mais uma questão de perder um pouco o medo, reentender. Porque, se a nossa criatividade é uma faísca divina, o que eu acredito que faça sentido, eu acho que esse tipo de trabalho não é anti-deus, é mais um entendimento da minha pessoa mesmo. Acho que está tudo no meu inconsciente e eu tento não domesticar nada, as coisas vão saindo. Não tento fazer uma coisa muito pensada, apesar de às vezes parecer. Em cima das imagens religiosas, eu uso bastantes pássaros e animais, que pra mim são tão divinos quanto as próprias imagens santas. Pintar por cima de foto e imagem é dominar a imagem.
Me fala um pouco do seu processo criativo.
Normalmente eu faço aos poucos, não consigo ter uma visão total do que eu vou fazer. É um processo lento e gradual, que eu nunca sei onde vai dar. Mas sou bastante obstinado na pintura. Normalmente, quando começo uma, não consigo parar de imaginar o que vou fazer até terminar. Fico bastante tenso. Se vou viajar e deixo umas pinturas inacabadas em casa, fico tenso. Preciso ver a coisa acontecendo, viver ela. Comecei agora uma tela a óleo em Porto Alegre, mas tenho bastante dificuldade, porque [com acrílica], se eu achar que tá ruim, jogo água, apago, ou vira outra coisa. É bastante orgânico, e o óleo não permite muito isso, porque faz muita sujeira e demora pra secar. A acrílica me permite mais essa organicidade. Estou indo para o óleo, pelo interesse da técnica, mas por enquanto a acrílica me resolve melhor.
Que outra técnica ou suporte te seduz?
Muitas coisas. Eu faço alguma coisa de escultura também, de animação. As animações eu fazia junto com o Thiago [Médici], um amigo meu que tá morando em Londres. Ele fazia mais a parte de programação e eu, a produção. Me interessa muito instalação, tenho vontade de fazer coisas públicas, mas não necessariamente em parques; tenho vontade de fazer coisas públicas por aí mesmo, dentro do mato. Tenho interesse em aprender escultura em madeira, tenho tocado música também... Mas o que eu faço mesmo é pintura.
Acho que é uma coisa muito da sua geração... Hoje as pessoas são mais multi-disciplinares, não se contentam em desenvolver só um tipo de trabalho.
Hoje tudo é muito acessível, a internet te explica como fazer qualquer coisa em casa. A gente tem que dar graças a Deus de ser filho da internet. Esse lance de referência de um lado e de outro, pirar em arte naïf mas ao mesmo tempo pirar numa escola da Itália específica ou numa escola de pintura metafísica, que são coisas que me interessam, acho que é tudo graças à internet. Se não fosse a internet, eu teria acesso só ao que as editoras decidem publicar. Se tu quiser fazer uma animação em casa, a internet te explica do começo ao fim. Se quiser aprender música, a internet te ensina a ler partitura. Acho que é por isso que essa geração multi-disciplinar.
Há alguns personagens recorrentes no seu trabalho: a igrejinha rosa com as pernas, o morcego-demônio e outros. O que eles representam pra você?
Gosto da “cabeça de polígono” e do “bicho-casa” porque eles não têm necessariamente uma face triste ou feliz. É mais pra explorar o mistério da falta de uma face. Ao mesmo tempo, eu faço animais com rosto, mas geralmente eles aparecem, desaparecem, voltam. Acho que é tudo parte de mim. Não significam algo fixo, mas no contexto de determinada pintura tem alguma coisa acontecendo. Então, dependendo da situação, eles têm uma função. Pensando numa pintura minha: o mesmo personagem aparece chegando, e ao mesmo tempo está num ritual de morte, está escondido e em um plano de fundo. Acho que tem um pouco dessa ausência de tempo, uma coisa meio Donnie Darko, dobras de espaço-tempo. As coisas acontecem em tempos diferentes, mas no mesmo quadro.
Quais são seus próximos projetos?
Estou só fazendo pintura, não tenho nenhuma exposição marcada. E acho isso ótimo, porque posso criar de forma mais livre, sem me preocupar com prazo, quantidade. Estou fazendo meu site também, o livro da Carla, tô pensando em fazer outro vídeo... Mas estou indo com calma, porque tem um monte de coisa rolando ao mesmo tempo, a faculdade também. E continuo pintando, estou com três pinturas em casa. Uma delas é mais noite, bem escura, com um pouco de chiaroscuro, algo que eu nunca fiz. Tem outra pintura que é bem mata fechada, acho que vai ser bem diferente das outras que eu já fiz, mais maximalista. E estou fazendo uma pequena com bastante técnica do realismo, que é esse negócio de vir do preto.
Você morou um tempo em São Paulo, depois voltou pra Porto Alegre. Antes da entrevista você me falou que tem vontade de viajar, de morar em outros lugares.
Eu não consigo ficar muito num lugar. Sinto a necessidade do novo, de ver coisas novas, morar em lugares novos. A tensão da mudança, todos os novos paradigmas que vão surgindo, isso me interessa. Eu estou acostumado a morar sozinho e estou sempre me mudando, desde pequeno. Isso me alimenta. Gosto muito do Uruguai, tem um vilarejo onde minha avó mora chamado La Coronilla. Ela cuida da casa de um pintor uruguaio chamado Jeckyll, meu pai tem duas pinturas dele: uma retrata um pessoal indo pra guerra, com cavalos e armas, outro tem um cara voltando da guerra, com muito mais neblina, tu só vê um vulto dele puxando o cavalo. A questão da neve dessa pintura, e a pintura desse cara especificamente, me influenciou muito, por estar na minha casa. Me interessa bastante também essa escola uruguaia, porque é bem diferente da brasileira, é mais institucional, mas ao mesmo tempo tem uma pegada própria. E aí tem esse lugar, La Coronilla, que é na beira do mar, tem uma casa a cada quarteirão mais ou menos, onde eu tenho vontade de morar. É onde minha avó mora e onde minha mãe nasceu, e é perto de Santa Vitória, onde eu nasci. Mas não sei se é o momento agora, acho que eu preciso fazer outras coisas ainda, por aí. Quando eu vim pra São Paulo, decidi um mês e meio antes. Também acho que o destino vai te levando pros lugares. É até meio chavão dizer isso, mas na minha vida as coisas acontecem assim. Vou indo pra onde o mar me leva, não tenho muitas raízes.