Disseminadores da arte de reproduzir imagens, Lee & Lou exploram as aventuras de criar em suportes públicos desde 2004, sob a alcunha alto*contraste. Mas, em vez de aderir ao graffiti, eles optaram por uma vertente da arte urbana pouco difundida no Brasil: a stencil art. Hoje, são reconhecidos internacionalmente – seus estranhos desenhos metade homem/metade bicho espalhados por São Paulo já rodaram por vários países. Exposições em Londres, Buenos Aires, Roma e Melbourne tornaram o casal um dos grandes expoentes do gênero no país. Além de ter desenvolvido uma linguagem particular em seus estênceis, o grande trunfo do duo é o impacto emocional de suas imagens alegóricas, infectadas de cores, referências da pop art e pavimentadas em traços da cultura underground.
Vocês estudaram na ETE Carlos de Campos (uma das escolas técnicas mais antigas e renomadas de São Paulo). Foi lá que tudo começou?
Nos conhecemos em 96, no primeiro ano de um curso técnico de desenho. Embora a gente já desenhasse desde muito antes, acho que foi a partir dali que a coisa toda começou a se formar. Não apenas com o desenho, mas com todo o pensamento artístico. Era a vivência, a troca de experiência, toda uma cultura se articulando entre amigos e um pouco de loucura também – o que de toda forma foi muito importante na nossa formação, mais até do que as aulas (risos). A gente ainda não pintava nas ruas, mas acompanhava muito de perto o que estava rolando com o graffiti. Essa escola em que nos conhecemos tinha uma cena forte de skate, punk e um puta link com o graffiti da época. De lá tinham acabado de sair OsGemeos, Onesto, Speto, e muitos de nossos amigos mais próximos ali ou já grafitavam ou começariam ainda naqueles anos e não parariam mais, como Pato, Jey, Guid, Zeila, Vermelho, entre outros. Era com esses “malcrias” que a gente compartilhava as aulas e também o bar. O Lou fez alguma coisa em estêncil já naqueles anos, mas não deu sequência nisso tão cedo. Então, quando perguntam o que nos levou a pintar nas ruas, costumamos dizer que foi exatamente esse contexto.
E por que optaram pelo estêncil?
Isso é até engraçado, porque não foi muito pensado. Acho que, mesmo inconscientemente, queríamos fazer algo juntos. E sempre curtimos essa estética do estêncil, essa pegada seca, gráfica, isso também era uma referência comum.
O alto*contraste veio como resultado disso?
Na verdade, antes de decidirmos trabalhar juntos, já tínhamos decidido viver juntos (risos). Daí vieram nossos filhos, e só então, lá pro final de 2004, começamos a repensar umas máscaras que andávamos cortando pra umas camisetas nossas e pra uma brincadeira na parede de casa. As máscaras cresceram e daí pra rua foi um pulo. Foi só o impulso de levar umas coisas nossas pra rua, sem nenhuma pretensão e com uma porrada de referências em comum, “carimbando” uns estênceis pela cidade em preto ou preto e branco. Foi muito simples e natural trabalharmos juntos, e ali nasceu o A*C.
Quem eram os artistas que inspiravam vocês?
Na época não tinha muita coisa de estêncil nas ruas, mas víamos muita coisa gringa na internet. E aqui alguns trampos do Ozi, do Celso Gitahy, do Donato. Eram coisas bacanas e tinham uma puta qualidade técnica e uma pegada oitentona bem deles. Mas nem conhecíamos eles ainda e esteticamente falando não podemos dizer que nos influenciaram tanto. Exposições de estêncil também eram poucas, e dessas poucas só uma ou outra chegava a atingir um público maior, como a do Alex Vallauri que rolou no MIS no final dos 90. Muito foda!
O estêncil foi pras ruas de SP no final dos anos 70, justamente por meio do trabalho de artistas como Alex Vallauri e Carlos Matuck, mas ainda se vê pouco desse tipo de trabalho na cidade. Como a cena evoluiu ao longo desses anos?
Não sei, mas acho que isso tem a ver com a influência do graffiti por aqui, do hip-hop americano, com toda uma tradição de free style. Já o Vallauri e a maioria dos seus contemporâneos vinham de outra escola, mais ligada às artes plásticas e à arte urbana que estavam rolando na Europa. E acho que isso vem se desenrolando até hoje. Infelizmente o estêncil por aqui está muito preso à reprodução pura e simples de uma imagem bacana. Com algumas ótimas exceções, são raros os artistas que desenvolvem uma identidade que se sobrepõe à técnica. A cena predominante preza pelo estilo, pela identidade, e é justamente essa identidade que ainda falta em grande parte do estêncil brasileiro. Isso acaba desestimulando o cara que está começando. Ele não consegue ver o estêncil como uma ferramenta a mais que pode servir ou não, só depende do seu propósito. Hoje tem gente que defende uma separação entre graffiti e estêncil, e até quem diga que o que sobrou do graffiti é o bomb, o throw-up. A gente não concorda nem discorda, simplesmente não estamos interessados em rótulos (risos).
O mercado de stencil art na gringa é muito diferente em relação ao Brasil?
Embora a diferença venha diminuindo, ainda é mais forte lá. Mas talvez porque lá se formou antes um grande público de jovens colecionadores. São eles que mais movimentam o mercado - caras que consomem arte como quem consome gadgets. Eles têm uma naturalidade enorme nisso, a gente mesmo já vendeu mais na gringa do que aqui, quase sempre através de um simples e-mail direto do comprador. E, claro, temos muito mais galerias voltadas à arte urbana por lá do que aqui.
O estêncil nasceu como arte de protesto, era contrapropaganda na 2ª Guerra Mundial. Os personagens “estranhos” que vocês fazem, metade homem/metade animal, são símbolos de crítica ou protesto?
De fato, o estêncil tem essa pegada de protesto justamente pela agilidade com que se pode espalhar uma mensagem nas ruas. Mas não é o nosso caso. Não porque somos alienados, é apenas o nosso trabalho que não é politizado (risos). Acreditamos que o simples fato de pintar na rua seja um ato político por si só, mas o nosso trabalho tem mais a ver com esse “estranho” que você mencionou, é aí que está nosso universo. E nesse ponto os personagens acabam meio que se impondo na criação, entende? Mesmo antes de pensarmos nessa questão, quando começamos, já trabalhávamos com algumas imagens de freaks. De uma forma ou de outra são personagens que encaram o transeunte, parecem passivos, mas podem ser niilistas, por que não? É comum as pessoas nos abordarem quando estamos pintando e, intrigadas, perguntarem o que queremos dizer com aqueles personagens. A intenção é não deixar muito claro, aí também está o estranhamento. Pra nós as cabeças de animais acabam carregando significados, como a do urso, por exemplo: pode remeter ao urso de pelúcia, o Teddy fofinho, mas também a um animal extremamente agressivo. Outro dia uma menina nos disse que dava vontade de abraçar nosso urso... Nós não recomendamos. Será que ela nunca ouviu a expressão “abraço de urso”? (risos)
O desenho de vocês é uma mistura de universo vintage, pop art e cultura underground. De onde vêm essas temáticas?
Difícil dizer exatamente, não é muito racional. São coisas que vêm de várias fases da vida e que só se tornaram mais claras pra nós quando deixaram de ser reminiscências e se tornaram objeto de trabalho. No geral, a gente curte mesmo coisas estranhas, talvez não tão estranhas por si – elas passam a ser estranhas quando retiradas do seu contexto original, relidas e realocadas. Mais ou menos como um bootleg na música, sabe? Você mistura chanson française com Jon Spencer e lá está uma música nova.
Como é trabalhar em dupla?
É difícil acreditar, mas fazemos tudo juntos, desde a troca de ideias, passando pela busca por referências, até a execução das máscaras e a pintura em si. Talvez o desenho (ou o redesenho de uma referência) seja um pouco mais individual, dependendo do caso, mas até nisso acaba sendo uma coisa só. A gente costuma dizer que fazemos estêncil como tudo o que fazemos juntos, do cuidado com as crianças e compras no supermercado ao sexo.
Vocês participaram do Cans Festival em Londres, que é um evento organizado pelo Banksy. Como rolou esse convite?
Foi uma puta surpresa. Certo dia a gente abriu os e-mails e lá estava o Tristan Manco [um dos maiores pesquisadores de arte urbana do mundo], que era um dos envolvidos na produção, nos convidando. Adoramos, claro! Mas até então não tínhamos nenhuma informação além das básicas. Só em Londres é que sabemos que o Banksy estava por trás. Aí sim entendemos todo aquele segredo: o local era um túnel que passa por baixo da Waterloo Station, e a coisa toda era secreta, uma simulação de obras no túnel com tapumes fechando as duas entradas, seguranças e tudo mais. E a recomendação era pra não divulgar nada antes da abertura. Pareceu exagero, mas depois, vendo as filas gigantescas na entrada na abertura [foram cerca de 30 mil pessoas só no primeiro fim de semana] e sentindo de perto a obsessão dos britânicos por tudo o que vinha do Banksy, caiu a ficha. No mais, foi ótimo trabalhar ali dentro com toda a liberdade e com um time tão foda.
O Banksy levou o estêncil a uma nova posição na street art lá fora, talvez seja o artista mais reconhecido e bem pago. Vocês acham que foi o mistério em torno dele que chamou a atenção das pessoas, ou o que importa é o lado estético?
Na verdade a gente não acha que o grande trunfo dele seja estético, o lance ali é a ousadia. Não apenas na temática ou na coragem de pintar em lugares como Londres, que tem uma câmera de segurança para cada 14 habitantes, mas na capacidade de pôr em prática ideias absurdas e que vão de encontro ao polido comportamento britânico – polido mas que não esconde uma lado paparazzo, o que acaba alimentando a “lenda”. Resumindo, ele é o cara que faz. Tem milhões de mini-banksys pela Europa, mas nenhum com a sua coerência e cara-de-pau (risos).
Recentemente, vocês participaram da expo Elemento Vazado na Matilha Cultural. Como é transportar o estêncil pra galeria?
Essa expo foi uma experiência muito bacana! Primeiro porque estávamos totalmente à vontade entre amigos, e isso é sempre bom. São caras que a gente curte como artistas e como pessoas. Além disso, a Matilha é um espaço com muita personalidade, independente, muito bem estruturado e com um engajamento político e ambiental muito forte, mas sem aquele ranço chato. Montamos a coisa toda como se estivéssemos na rua, tudo em um só dia, optando por dividir o espaço entre um painel coletivo e uma parede com trabalhos em outros suportes. É sempre diferente produzir em suportes fora da rua, mas não menos prazeroso. Se por um lado uma exposição tira um pouco daquela espontaneidade da rua, por outro te leva a experimentar novos materiais e observar de que forma os trabalhos dialogam entre si e com o público. Naquele momento as pessoas têm um olhar mais focado, menos automático do que nas ruas.
O estêncil tem uma certa familiaridade com as gravuras e o modus operandi semelhante a técnicas como a xilogravura e litogravura. Vocês usam outras técnicas ou suportes?
De fato o estêncil dialoga com diversos outros processos de reprodução, mas talvez seja o único que te tira das quatro paredes de um ateliê, já que praticamente qualquer superfície se presta a suporte para o estêncil. Nos interessa não só a mágica de reproduzir imagens, mas também a própria relação do homem com a máquina ou ferramenta que o separa da sua arte, o embate. É um lance meio romântico, meio piegas mesmo (risos). Mas ainda não pudemos explorar muita coisa pra valer. Há pouco tempo tiramos uma pequena série de gravuras misturando xilo, estêncil e acrílica. A serigrafia a gente também vem namorando há um tempão, talvez seja o mais impessoal desses processos, mas sem dúvida é o mais democrático... Qualquer dia desses a gente chega num acordo entre os nossos ursos e ela.
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