Girl Talk . A (pop) arte do sample

regg Gillis subverte as regras da música pop e ganha até dia oficial na sua cidade natal.

POR SEAN EDGAR   TRADUÇÃO ALEXANDRE BOIDE
publicado em 22.07.2011 12:02  | última atualização 12.09.2011 09:53

Girl Talk: a festa é sua, a festa é nossa, é de quem vier POR Sean Edgar

Gregg Gillis, mais conhecido como o mestre independente dos samples Girl Talk, acordou estranhamente cedo na manhã do dia 6 de dezembro de 2010. Ele havia passado boa parte do mês anterior fazendo os últimos retoques em seu novo disco, All Day, antes de embarcar em uma turnê pela América do Sul e se preparar para os shows que faria em sua cidade natal, Pittsburgh, no estado americano da Pensilvânia. Graças a seu habitual papel de destaque em baladas dançantes que se estendem até a alta madrugada, Gillis raramente está acordado na hora em que o sol se levanta. “Essa realmente não é a minha rotina”, ele explica com seu jeito sereno de falar. Naquele dia, grogue de sono, ele se dirigiu até o prédio da câmara municipal de Pittsburgh levando sua namorada e seu pai a tiracolo. Eles fizeram um passeio turístico pelo histórico edifício e assistiram à condecoração de um grupo de escoteiros. Foi então que o incomumente bem arrumado músico de 30 anos de idade foi chamado ao plenário, que depois de uma votação declarou que o dia 6 de dezembro de 2010 seria sempre lembrado como o Dia de Gregg Gillis na cidade de Pittsburgh. “Foi uma grande honra, mas também uma coisa totalmente maluca e inesperada”, ele relembra. “Aí eu fui pra casa e tirei um cochilo. Depois fiquei deitado vendo TV o dia todo. Acho que nem saí de casa. Então pra mim foi meio que o dia perfeito.”

 

Apesar de estar no centro de uma grande controvérsia em relação à criação musical e de parecer um remanescente do desbunde dos anos 60 com sua barba comprida e sua bandana sempre encharcada de suor, seu reconhecimento político não é tão estranho como pode parecer. Afinal de contas, Gillis e seu alter ego hiperativo Girl Talk têm os dois pés cravados na esfera do domínio público. Enquanto a maior parte das músicas tendem a surgir do âmago emocional de um artista, Gillis só tem interessa no tipo de arte que já conquistou seu lugar, ainda que temporário, nos ouvidos do grande público. Em termos mais estritos, o projeto Girl Talk não pode ser descrito com uma obra composta por um músico (embora Gillis certamente seja um); a colcha de retalhos que ele cria em suas faixas não deixa claro se estamos diante do trabalho de um crítico musical, de um engenheiro de som, de um historiador ou de um músico. Armado somente com um laptop decorado com pedaços de fita adesiva e do grande conhecimento que possui sobre computadores, ele recicla, ressignifica e disseca fragmentos sonoros que incluem desde Jay-Z até Blue Öyster Cult em colagens épicas que, para serem plenamente desfrutadas, precisam ser ouvidas em grandes pistas de dança repletas de gente suada. A única qualificação necessária para um sample entrar em um álbum seu é ser popular. Mainstream. Aclamado pelas massas.

 

À primeira vista, a ideia de juntar uma porção de músicas famosas em uma só faixa não parece muito inovadora. O que não falta na cena noturna são especialistas em mashup. Nightmares on Wax e o Gray Album do Danger Mouse já apareceram e já viraram coisa do passado. No entanto, nenhum desses artistas se tornou popular a ponto de derrubar a internet – um feito que Gills conseguiu no dia 17 de novembro do ano passado, quando disponibilizou de graça a versão digital de seu álbum All Day. O número de visitas e o tráfego intenso de dados derrubou o site do selo do projeto Girl Talk, Illegal Art, forçando a criação de novos links no dia seguinte. “Usamos servidores capazes de garantir uma quantidade de downloads três vezes maior que a necessária na primeira semana de lançamento do disco anterior”, conta Gillis. “E com certeza o número foi muito além disso. Eu sabia que ia fazer algum barulho, que os shows estavam ficando maiores nos últimos dois anos, que havia certa expectativa. Mas a coisa explodiu e virou uma loucura, algo que eu nunca imaginei ser possível.” Nas apresentações ao vivo, a recepção tem sido igualmente impressionante, com diversos shows com lotação esgotada e casa cheia na grande maioria deles. As razões para o seu sucesso são muitas, mas uma qualidade em especial difundiu o nome Girl Talk entre as massas sem um investimento expressivo em publicidade ou marketing.

 

Bill Peduto, o vereador de Pittsburgh responsável pelo Dia de Gregg Gillis, é – além de um grande fã do Girl Talk – um exemplo perfeito do que faz o projeto ser popular. “Tenho 46 anos, fui jovem nos anos 80 e DJ na época da faculdade. A sensibilidade musical [de Gillis] e sua sátira aos grandes sons dos anos 80 foi algo que chamou atenção. Essa capacidade de misturar tantos sons uns por cima dos outros foi uma coisa que eu nunca tinha ouvido antes.” Ainda que hesite em definir sua música como uma sátira, Gillis é de fato um grande fã dos anos 80. A faixa “Here’s the Thing”, do álbum Night Ripper, tem como base “Jessie’s Girl”, de Rick Springfield, e “Step to It” é toda ancorada no famoso riff de teclado de “Jump”, do Van Halen. Gillis, porém, é também um grande fã dos anos 60, 70, 80, 90 e dos anos 00. Uma contagem dos samples presentes em All Day ultrapassa facilmente o número de 375. Com centenas de fragmentos sonoros de grandes sucessos dos últimos 40 anos, é impossível que você, sua namorada ou namorado e até mesmo os seus avós não sintam uma atração nostálgica por essa releitura dos velhos hits do passado.

 

Em virtude da ambição e do escopo de seu trabalho, Gillis prefere não ser chamado de DJ; ele não apenas se apresenta com camisetas com seu lema escrito em letras garrafais, EU NÃO SOU DJ, como também as põe à venda como um mercadoria relacionada à sua música. O artista é ainda mais cauteloso ao se identificar com o gênero mashup. “É óbvio que as minhas músicas são mashups”, ele esclarece. “Acho que existem grandes trabalhos nesse ramo, então a minha intenção não é ofender ninguém. Mas eu já fazia isso muito antes de ouvir a definição de mashup como um remix de músicas pop. Eu curtia coisas como Negativland e John Oswald, Kid606 e Operation Re-Information, mas por causa dos produtores de hip-hop. Então, quando ouvi os mashups começarem a surgir no começo dos anos 2000, achei uma coisa interessante. Mas eu não queria fazer só isso. Os mashups são vistos geralmente como a Música A sobre a base da Música B, e eu acho que existe todo um universo musical baseado em samples que vai além disso.”

 

Apesar de citar velhos maestros dos beats como grande inspiração, sua abordagem da cultura pop muitas vezes o faz ser comparado a outra figura controversa nascida em Pittsburgh: Andy Warhol. “As pessoas criadas em Pittsburgh aprendem sobre Andy Warhol já no ensino fundamental. Comecei a conhecer o Warhol quando tinha uns 13 ou 14 anos, e nessa época eu achava que a arte era uma coisa torturante e sofrida. Curtia um som tipo Nirvana. Ouço falar bastante sobre o Warhol e essa forma diferente de se apropriar da cultura pop como arte. Mudar a forma de ver a coisa. Algumas pessoas gostam muito disso, mas outras se sentem ofendidas.”

 

Artista, cineasta e figura de destaque nas colunas sociais, Warhol se tornou famoso principalmente por suas recriações em tela de fragmentos de histórias em quadrinhos, retratos de celebridades e anúncios publicitários – qualquer coisa que fosse um “produto aceito pela sociedade em geral”. Assim como Gillis, Warhol fez com que a cultura pop fosse submetida a um novo filtro, com ferramentas pouco ortodoxas; no caso de Warhol, um pincel e uma tela de silkscreen. Eric Shiner, curador do Andy Warhol Museum, ratifica a comparação. “O Girl Talk reúne diferentes fragmentos e segmentos de cultura, dá para perceber cada faixa, cada música de que ele se apropria para juntar tudo em uma nova obra”, ele explica. “É um remanejamento contínuo de coisas surgidas no mainstream. Mas acho que a principal diferença está no fato de que o Girl Talk pega várias músicas e condensa tudo na mesma faixa, enquanto as imagens de Warhol tendiam a ser fragmentos amplificados. Eles trabalham a partir da mesma linguagem, mas de maneiras diferentes.”

 

Apesar de compartilhar com Warhol a metodologia, existe um obstáculo ao panteão da arte reciclada que Gillis vem sendo obrigado a enfrentar sozinho: a lei de direitos autorais. O inegável fato de que o Girl Talk usa músicas distribuídas por grandes gravadoras gerou muitos questionamentos éticos e legais. O que impede um bando de advogados implacáveis de buscar uma punição exemplar para alguém que faz música experimental usando samples, se centenas de adolescentes já foram processados simplesmente por baixar MP3 de baixa qualidade? Não à toa, o selo que distribui o Girl Talk se chama Illegal Art. Entrando ainda mais no campo minado, Gillis não teve o menor pudor em samplear bandas que já entraram em conflito com os próprios fãs por baixarem seus álbuns de graça. A faixa “Like This”, do Girl Talk, junta as rimas ousadas de Lil Mama com os riffs ásperos e abrasivos de “One”, do Metallica – um ato de suprema ironia para qualquer um que se lembre dos chiliques do baterista Lars Ulrich contra o Napster no começo dos anos 00. Nada disso passou despercebido no caso de Gillis. “Night Ripper, meu terceiro álbum (2006), estourou e foi parar em revistas de circulação nacional. Boa parte da imprensa reagiu muito mal – ‘Ah, ele vai ser processado por 300 artistas diferentes!’ É uma forma infeliz de encarar a questão, porque tecnicamente pode ser algo feito dentro da lei. A discussão cai em uma zona cinzenta, e só vai ser esclarecida quando for levada a um tribunal, mas acho que existe uma opinião generalizada sobre os samples. Se você perguntar pras pessoas na rua, elas vão dizer que acham que, se você samplear sem pedir permissão, é ilegal – fim de papo. Não é bem assim. Isso pode ser feito dentro da lei.”

 

A lei a que Gillis se refere é a “Fair Use Doctrine” (“Doutrina do Uso Justo”, em tradução livre), que estabelece várias condições nas quais o direito de uso se sobrepõe ao direito autoral. Seus principais pontos permitem que sejam feitas cópias para fins de “crítica, comentário, notícia, ensino, estudo e pesquisa”. Então, quando o site de um grande veículo de comunicação inclui um trecho de um filme ao lado de uma resenha ou um grupo de cheerleaders usa um beat de Sir Mix-a-Lot em uma competição, isso pode ser muito bem considerado um uso justo. Obviamente, um produtor de mixes megapopulares como Gillis tem uma relação muito mais complexa com essa cláusula de proteção, que nunca foi submetida ao julgamento de um tribunal. Até mesmo o United States Copyright Office faz questão de sublinhar: “A distinção entre uso justo e infração à lei pode ser muito pouco clara e difícil de determinar. Não existe um número específico de palavras, versos ou notas que possa ser usado sem permissão.” Não se trata exatamente da brecha legal que Gillis afirma ser: qualquer trecho extraído de um arquivo de áudio protegido por copyright é considerado uma obra derivativa. Para produzir obras derivativas é preciso obter a permissão de seus criadores, e historicamente os processos judiciais costumam girar em torno desses detalhes. Até agora, porém, o Girl Talk se manteve a salvo de centenas de litígios em potencial. Por outro lado, Gillis foi criado em uma era em que a tecnologia transformou o próprio conceito de propriedade intelectual. “Acho que nem preciso mais explicar pras pessoas que é possível pegar algo que já existe e criar uma coisa nova”, ele esclarece, com uma ponta de arrogância. “Qualquer um é capaz de entender esse conceito. Quem entrar no YouTube vai ver esse tipo de coisa o tempo todo.”

 

Uma explicação mais realista para tranquilidade jurídica do Girl Talk é que a indústria da música gosta dele. E muito. O lado bom de comprimir um monte de batidas e estilos em uma coisa só é que novos ouvintes são apresentados a músicos pelos quais normalmente não se interessariam. O hipster elitista padrão do Brooklyn não daria a menor bola para um artista mainstream como Ludacris, mas é só misturar “How Low Can You Go” com as guitarras anguladas de “1901”, do Phoenix, e o resultado é oficialmente uma obra cool pós-moderna. “Cada vez mais artistas estão apoiando”, conta Gillis. “Já faz quatro ou cinco anos, e eu não sei o que o futuro me reserva a esta altura, mas até agora não tive problemas. As pessoas ainda estão empolgadas e ainda curtem a música, e não é por causa desse drama dos direitos autorais, é por causa da música.”

 

Gillis provavelmente não tem por que se preocupar com o futuro; os selos que poderiam tê-lo processado quatro anos atrás começaram a mandar músicas para ele, pedindo a inclusão de novos rappers e roqueiros em seu catálogo. Ele chegou inclusive a ser convidado para fazer remixes. Inteligentemente, Gillis prefere dedicar todo seu tempo a registrar a história da música pop com seu alter ego Girl Talk. “Tudo isso é legal, mas o projeto Girl Talk é um trabalho em tempo integral. Estou sempre trabalhando nele. Simplesmente não tenho tempo pra mais nada.”

 

Saiba mais:

illegal-art.net

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