Longe do reduto Vila Madalena/Pinheiros, a Matilha Cultural escolheu o Centro de São Paulo, região tão vibrante quanto socialmente degradada, para fincar suas raízes e criar um espaço multidisciplinar aberto ao público. A iniciativa de transformar um prédio abandonado em local de convergência de ideias partiu do cineasta Ricardo Santos. “Em meados de 2004, o Ricardo escolheu o prédio para gravar um dos curtas dele, o Subcutâneo. Ele acabou se envolvendo com o lugar e com a vizinhança e percebeu que era uma zona muito usada da cidade, mas pouco cuidada, com pouca interação entre as pessoas”, explica Rebeca Lerer, diretora da Matilha Cultural.
Daí veio a ideia de reformar o prédio e criar um novo espaço, com uma formatação diferente dos lugares que já existiam na capital. A começar pela importância dada aos critérios de sustentabilidade: toda madeira da casa é certificada ou foi reaproveitada, a compostagem do lixo é realizada no próprio prédio, o uso do plástico é evitado ao máximo e a cozinha do bar é vegetariana, para reduzir os resíduos provenientes da carne.
Em maio de 2009, a Matilha foi inaugurada e abraçou como primeiro projeto a arborização das imediações. “Queríamos uma maneira de apresentar a casa para a vizinhança e mostrar que chegamos para somar e não para higienizar o lugar. Para isso, contatamos os vizinhos e os convidamos para participar de um abaixo-assinado e garantir a realização do projeto. Conseguimos duas mil assinaturas e garantimos o plantio de 400 árvores em 24 ruas no entorno do prédio.”
O viés ambiental ganha força durante o mês de setembro deste ano, quando acontece a Setembro Verde: ocupação com debates, filmes e exposições. Procurando aproximar o público dos movimentos sócio-ambientais do país, a iniciativa usa a cultura como ponto de debate para temas como o Código Florestal, a construção da usina de Belo Monte e a mobilidade em São Paulo. O Cineclube Socioambiental Crisantempo, o Goethe Institut SP e o Festival Entretodos apoiam uma mostra cinematográfica, que conta com 14 longas e seis curta-metragens, incluindo títulos como Receitas de um Desastre, A Era da Estupidez, Cortina de Fumaça e Caminhos da Mantiqueira.
Outras ações sociais também fazem parte da agenda da casa. Entre elas, uma feira de adoção de cachorros e gatos que acontece todos os domingos em parceria com a ONG Natureza em Forma. “O Ricardo sempre foi ativista da causa dos direitos dos animais. O espaço é totalmente dog friendly, e faz parte do nosso calendário anual um evento dedicado aos animais. Nossa ideia é debater a questão do abandono e conscientizar a população sobre os cerca de três milhões de animais desamparados na cidade.”
Além dos ideais sustentáveis, a Matilha se diferencia de outros espaços por agrupar muitos conceitos que vão além do usual. Não é apenas uma galeria, um cinema, um espaço cultural ou uma ONG — o mote é a universalização do acesso ao conhecimento, não só digital, mas humano. “Abordamos um conteúdo bem amplo: ao mesmo tempo em que gente expõe fotos da revolução da Líbia, também incentivamos exposições com skate, pixo e estêncil. Já abrimos a casa para lançamentos de livros, de discos, festivais de cinema e projetos que incluem cinema com show, show com happy hour etc.”
A programação procura estar sintonizada com o que está rolando na cena mundial e é decidida coletivamente. Rebeca explica que cada integrante traz seu background — uma rede multimídia de pessoas, autores e artistas — para construir o conteúdo que será discutido em cada evento. Como a Matilha não cobra entrada, depende do bar e de outras fontes para sobreviver. “É um desafio muito grande, ainda mais da maneira independente que a gente quer fazer. Por isso, locamos o espaço para alguns eventos ou fazemos permutas. Geralmente não pagamos pelo material exposto aqui, e acontece às vezes de um projeto ter a fonte de um edital e entrar uma verba de patrocínio”, ela detalha. Com a proposta de ser um lugar seguro e gratuito para que as pessoas se conheçam e tenham um espaço para trocar ideias, eles também se propõem a funcionar respeitando os horários do transporte coletivo, para que todos possam ter acesso ao local.
Depois de mais de dois anos de funcionamento, a Matilha segue buscando um caminho para manter a essência independente e ao mesmo tempo ter uma capacidade financeira maior. “Estamos em um processo interno de avaliação, é um passo natural para o desenvolvimento”, revela Rebeca. Pensativa, ela prossegue: “É muito comum fora [do Brasil] as pessoas investirem no bem comum e coletivo. Nós gostaríamos que mais gente pudesse doar seu talento, trabalho, dinheiro, tempo ou recurso para ajudar iniciativas como essa.” Mudar mentalidades e criar bons hábitos é missão das mais complicadas da vida em sociedade. Coincidência ou não, poucas vezes o mundo precisou mais de pessoas dispostas a aceitar o desafio do que agora.