Quando fomos para Barbados, eu e o Fernando, sabíamos pouco sobre a ilha além do fato de ser um paraíso caribenho e a terra natal da Rihanna. Chegamos à capital, Bridgetown, na última semana de julho para cobrir o final do Crop Over, mega carnaval com dois meses de duração e principal evento cultural do minúsculo país (menos de 300 mil habitantes). Não demorou para nos darmos conta de que havia muito mais para ser visto.
A mistura entre o legado britânico e o africano produziu uma cultura vibrante, mas, ao contrário de outras colônias inglesas como a Jamaica ou a Guiana, também construiu uma sociedade razoavelmente igualitária e estruturada (Barbados tem o terceiro maior IDH das Américas, atrás apenas de EUA e Canadá). Isso se traduz em um povo aparentemente bem resolvido com sua herança e que celebra sua liberdade com desenvoltura invejável, até para observadores do País do Carnaval.
A festança é encerrada por um grande evento, o Grand Kadooment & Emancipation Day, no qual este ensaio é baseado. Durante oito horas, dezenas de “bandas” (os trios elétricos locais) embalam uma multidão incansável, que atravessa a capital celebrando a abolição da escravatura a goles de rum e cerveja Banks. A etnografia dos blocos é variada: alguns são formados quase totalmente por turistas (ingleses, na maioria), outros são mistos e vários trazem só locais. Mas o que mais chama a atenção a olhares e ouvidos de primeira viagem é a simbiose entre música e dança. A música é uma versão mais rápida e moderna da soca, o gênero local, que mistura calypso e reggaeton/dancehall a beats aparentados do rap e do grime. Já a dança, o wuk up, é mais ou menos como se o funk carioca tivesse conquistado as micaretas. Em bom português: descontração na velocidade 5 do créu.
O Fernando tem uma história peculiar com a fotografia. Começou fazendo foto de skate, quase por acaso, e relutou até se definir como fotógrafo. Nos últimos anos, se tornou um dos grandes nomes do ramo no Brasil. O jeitão tímido que ele tem desde criança fez dele um observador, qualidade indispensável a quem pretende registrar o mundo (arte na qual ele admira gente como Win Wenders, Herzog, Kusturica e, claro, Bresson). Essa união entre observação quase slacker e agilidade para registrar movimentos fez dele o cara certo na hora certa. Abaixo, ele fala sobre a experiência, e nas páginas seguintes você confere o resultado.
Qual foi o seu critério para montar o ensaio?
O que mais me chamou a atenção foi esse lance da essência do carnaval, que é a catarse coletiva anual, aquele período do ano que você tira pra se libertar, pra ficar bêbado, dançar. Esse é o mote original do carnaval, e eles têm isso preservado. Então, involuntariamente, o que me atraiu foram esses momentos de libertação.
Várias imagens têm um teor sexual forte, mas no conjunto são diferentes da maioria dos ensaios sobre o funk carioca, por exemplo. Como você encara a sexualidade nesse contexto?
Mostrei essas fotos pra algumas pessoas e alguém me disse que é uma sexualidade quase formal. A dança é muito sexual, mas não existe contato sexual além da dança. Não é como a pegação do carnaval da Bahia, por exemplo. Existe uma força sexual gigante, com cenas bem fortes, mas... Sei lá, pra entender tem que estar lá. Mas em momento algum eu quis focar nisso.
No Brasil muitas pessoas classificariam esse tipo de coisa como misoginia ou degradação feminina.
Eu acho que ali é o carnaval da libertação, inclusive da mulher, porque na verdade são elas quem mandam. O homem é quase uma ferramenta, é quase um pole dance humano (risos). A mulher é o oposto disso, é ela quem usa o homem. Vi outro dia um documentário sobre vodu, e a presença da mulher nos rituais é muito sexual, tem momentos em que ela se esfrega no caboclo, representando a fertilidade e tal. Talvez isso venha daí.
Você também fotografou bastante o contexto, as pessoas vendo a parada na rua.
Tudo tem esse quê de libertação. O mais importante era ver que todo mundo ali estava se divertindo junto, uma coisa só. Tem a divisão entre quem tá no bloco e quem não tá, mas quem tá fora também participa. O pessoal de dentro não exclui, dá bebida, põe pra dentro. Achei legal essa libertação de tudo mesmo, de classe, cultura, preconceito. Mulher dançando com mulher, homem com homem, todo mundo junto, se esbarrando, jogando bebida um no outro, e ninguém briga. Tá todo mundo ali por um motivo só: se divertir.
O que esse ensaio fala do seu momento como fotógrafo?
Eu fotografo há 7 anos e acho que pela primeira vez entendi quem é o Fernando fotógrafo, pra onde eu quero ir, como eu me sinto à vontade. O que eu gosto muito de fazer é fotografar o que tá acontecendo junto, estar no meio da coisa. Um pouco de fotojornalismo, mas também algo muito pessoal. Gosto de estar ali com as pessoas, me misturar, sem seguir diretrizes. Gosto de não saber antes o que eu vou fotografar, por exemplo. E Barbados foi muito isso, eu não fazia ideia do que ia ser, quanto tempo ia durar, nada. Não tive tempo de montar estratégia. Pra mim isso é fundamental.
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