“Com o tempo eu fui vendo, vivendo e entendendo que somos simples criaturas em desenvolvimento. Somos todos reféns do próprio sentimento, afogando as mágoas numa piscina de lamentos.” É assim que a rapper curitibana Karol Conká inicia seu primeiro EP, homônimo, com a levada de “Melhor que se Faz”, produzida por Nel Sentimentum. A reflexão melancólica, entretanto, é apenas um lado das rimas de Karol, que deixa claro que a pegada de seu trabalho é contar histórias com alegria, mostrando um mundo real – e por vezes difícil – pautado por uma visão otimista.
Depois de vários shows em São Paulo, novos sons e a preparação de seu primeiro álbum de estúdio, Karol lançou o clipe “Boa Noite”, faixa com produção de Nave, e está prestes a lançar mais um, “Gandaia”. Risonha e articulada, a rapper que quase virou cantora de MPB adiantou para a Soma detalhes de seu novo álbum, contou um pouco sobre sua pesquisa de ritmos brasileiros e afirmou que pretende mudar o cenário do rap nacional. “Quero incluir um elemento de fábula na hora de contar as minhas histórias. O rap precisa se libertar, e é isso que quero fazer com as minhas rimas.”
Como você começou a se interessar pelo rap? Você já comentou várias vezes que a sua criação veio mais do samba...
Na estante da minha casa só tinha samba de raiz. Jorge Aragão, Beth Carvalho... Ouvia também Elis Regina, Milton Nascimento, Djavan, Toquinho, Cartola. Minha infância foi só MPB e samba, e de vez em quando até um reggae. Sempre gostei de palco, desde pequena sempre quis atrair a atenção das pessoas, e decidi que queria ser artista. E o natural pra mim foi pensar em ser cantora de MPB. Entrei em umas aulinhas de técnica vocal e tal, mas como sempre fui muito ativa, espoleta, não conseguia parar quieta nem escrever nada que coubesse nessa levada MPB. Quando finalmente comprei um CD do Fugees, encontrei a Lauryn Hill e saquei o que queria fazer. Depois disso, rolou uma competição no meu colégio quando eu tinha uns 16 anos, e fui a única aluna que teve coragem de soltar um rap. Pra melhorar, o pessoal curtiu muito. A partir daí eu já sabia que a tal Karol cantora de MPB tinha ido pro brejo.
Mas você acabou absorvendo essas influências de samba, MPB e outros ritmos brasileiros, como dá para ver no próprio clipe de “Boa Noite”, não é?
Sim, foi aí que percebi que era possível misturar tudo isso. Levei a essência da MPB para o rap. E muito da minha levada, do meu flow e da maneira como eu canto surgiu a partir do samba. As minhas melodias acabam ficando características por isso. Tanto que o clipe começa com um sample de Baianas de Alagoas, aquele “boa noite, meu senhor e senhora”. Elas são um grupo de lavadeiras que cantam essas canções, e acho importante colocar um sample desses na minha música.
O rap brasileiro tem uma influência gigantesca dos gringos, o que é normal, mas acho importantíssimo que o meu trabalho reflita a cultura do Brasil. Esse sample em “Boa Noite”, aliás, é uma homenagem à Nação Zumbi, porque o Chico Science já tinha usado um pedaço dessa música em uma faixa. Quando o clipe de “Boa Noite” passou na MTV, todo mundo queria saber que música era essa, de onde vinha esse sample. Despertou o interesse das pessoas exatamente em cima de algo que é característico do “ser brasileiro”, sabe?
Seu novo álbum segue essa tendência de explorar ritmos brasileiros?
Em uma das músicas eu logo falei pro Nave, meu produtor, que queria muito colocar um sample super brasileiro. Daí a gente acabou colocando um batuque de uns repentistas cearenses que ouvimos em um vinil antiquíssimo. Tem um pedaço desse sample que é muito valioso para o que eu quero colocar na minha música. Eles repetem “quero amar, quero amar”, e é uma sonoridade que ficou super legal no disco novo.
Você fez uma pesquisa grande atrás desses sons?
Na verdade foi algo mais intuitivo, de ir fuçando em coisas antigas e vinis e perguntar para as pessoas. Embora seja difícil afirmar isso de maneira categórica, eu sei o que vai ser agradável para o meu público, o que eles vão curtir. Então pesquisei muita coisa antiga de ritmos brasileiros, na mesma época em que fui atrás de sons gringos. Minha ideia no disco novo foi misturar tudo isso. Além de ritmos brasileiros, trouxe muita coisa de gente como Santigold, M.I.A., Erykah Badu... Uma coisa que eu e o Nave ouvimos sem parar também foi um clipe incrível do Frank Ocean, “Think About You”, que inspirou a gente pra caralho. É uma coisa indígena, muito louca. Mas é importante não se prender apenas a essa busca por samples, pra não surtar em cima disso.
Você se preocupou para que isso não ficasse uma coisa muito estudada, artificial?
É exatamente essa a história de “Boa Noite”. Pesquisamos muitas batidas e tal, mas tem uma hora que você precisa parar e se concentrar na canção mesmo, pra ficar mais fluido. Não quis ficar bitolada, porque quero que as minhas músicas sejam mais light. “Boa Noite” eu escrevi e tal, mas fiquei louca por três dias repetindo: “Meu Deus, e agora, isso não tem refrão!”. Daí teve uma hora que fiquei repetindo a parte anterior, “ouça seu som bem alto, ouça seu som bem alto”, e virou “ouça seu som bem alto, se emocione” (canta, mudando de entonação), e ficou. Daí o clipe foi gravado da meia-noite até às cinco da manhã. É isso que eu quero dizer com light: ser mais natural, no ritmo em que precisa ser feito, sem parar pra analisar muito e deixar o processo de criação engessado.
E mesmo porque não seria um problema a música não ter refrão.
Exatamente, acho ótimo também não ter refrão. O refrão muitas vezes é o tchan da música, mas se o tema já for rico não há necessidade. Tanto que eu não quis criar um refrão cheio de palavras, não vi essa necessidade, a música não pediu.
Você comentou que sabe o que o seu público quer ouvir. Como consegue medir isso?
Eu me coloco muito no lugar do povão, falo com todo mundo. E acredito que tenho um bom gosto, então consigo me colocar no lugar das pessoas e sacar o que elas querem.
Como assim, bom gosto? Isso é muito relativo.
É que eu sou muito eclética, sou de ouvir tudo, sem preconceitos. E tem mais: agora que estou focada na produção do meu novo álbum, eu praticamente não escuto rap, porque senão acabo me influenciando demais e copiando as batidas de maneira inconsciente. Acho que assim consigo entender melhor o meu trabalho e pensar em algo que o público quer e que só eu posso dar. O meu propósito é fazer um álbum de rap que ninguém jamais pensou em fazer, então preciso ter uma distância do trampo dos outros. Quero chegar com um flow diferente e, acima de tudo, histórias diferentes, narrativas que só eu posso contar. Quero que as pessoas ouçam o meu rap e entrem no País das Maravilhas, nesse mundo Conká.
O que você quer dizer com isso? Seu rap vai trazer um elemento de fantasia?
Exatamente, de fábula. Quero que as pessoas ouçam e se sintam dentro desse mundo imaginário, sabe? Vou trazer ilusão para as pessoas, para que tudo fique bem – ao menos durante o tempo em que elas ouvem a minha música. O propósito do meu álbum é “a alegria é agora e amanhã”.
Percebi que o seu EP, apesar de falar sobre mágoas, desilusões e problemas do cotidiano, tem um tom bastante positivo, de olhar para o mundo imaginando algo melhor.
Exatamente, e o álbum vai ser assim também. Eu sou essa moleca, essa menina feliz, divertida. Desde que comecei sempre fui assim. Entrei no rap, aliás, por causa disso – quero que exista espaço para essa menina mulher, essa garota divertida, alegre e irreverente. A primeira coisa que percebi quando fui em uma festa de rap lá em Curitiba é que todas as garotas que cantavam rap subiam no palco naquela pegada hiper masculinizada, cantando grosso e gesticulando. Achei aquilo muito feio, porque não era de verdade. Daí virei pra minha prima e falei: “Vou cantar rap de sainha, de tênis rosa e falando bonito”. Fiquei triste de ver aquelas garotas tendo que interpretar um papel que não queriam só para serem aceitas. A gente preza muito a realidade no rap, e a mulher não precisa ser igual ao homem. Eu posso falar de rímel na minha música, se quiser. Quero cantar sobre quem eu sou, sobre esse mundo fantasia, e é esse padrão que o meu álbum quer quebrar.
Você comentou que seu novo álbum vai trazer histórias que só você pode contar. Que narrativas são essas?
Vou falar sobre esse mundo da Karol Conká. Tem uma música, que por enquanto estamos chamando de “Mundo Louco”, que traz uma narrativa que eu queria viver. Mostrei pra minha mãe e ela me perguntou: “Karol, mas você vive isso?” Claro que não, ninguém vive as coisas a partir de um tom de fábula. Os passarinhos não cantam, o céu não é colorido e a grama não vive brilhando. Mas o que eu quero é que as pessoas, ao menos por um minuto, suspendam a incredulidade e vivam essa magia comigo. Acho importante essa transformação do real, essa brincadeira, essa vontade de olhar o mundo para além do que ele é. Por exemplo: sabe o clipe de “California Gurls”, da Katy Perry? Ela não vive o tempo todo com aquele pirulitinho na mão em cima da nuvem de algodão doce, e mesmo assim aquilo pra ela é verdadeiro, é um momento. E isso faz sentido porque sou menina, alegre e atrevida. O rap precisa se libertar, e é isso que quero fazer.
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