Seguindo pelas zonas oeste, um pedaço da sul e centro, vias geralmente congestionadas de automóveis, motocicletas e pedestres, impossível não entrar em devaneio.
Em São Paulo, vinte milhões de seres vão e voltam 24 horas por dia e dão forma à sexta maior aglomeração urbana do mundo, uma rua e um trânsito mal educados e não recomendados para pessoas muito tímidas. Em um minuto você pode dar um beijo em alguém e tomar uma surra do asfalto. Uma cidade temperamental, geralmente infernal e barulhenta, com altos índices de poluição, tomada por uma frota recorde e crescente de 7 milhões de automóveis e motocicletas. Para nós paulistanos, moradores e acostumados com o fluxo do dia-a-dia ou para os forasteiros que conhecem a fama, o conjunto dessas vias desnudadas, transmite a sensação do surreal.
Esquecendo isso e analisando apenas o espaço, São Paulo pega desagasalhada se mostra uma cidade verde e humana, digna de pensamentos interessantes. E se essa revolução não tivesse volta? E nós, consumidores de gente, como fazer para devorar um semelhantezinho? Puxando a sardinha para a minha brasa, seria muito mixuruca o noticiário sem seus protagonistas quase sempre a beira de um ataque de nervos. Privados da progressão da vida moderna enlouqueceríamos na boa, de repente livres das garrafas PET, das filas no Bradesco, do louco com o trezoitão na mão, do excesso de informação, da concentração que um simples cruzamento sob um semáforo vermelho exige e retomaríamos um ritmo mais uruguaio de vida – que não sei qual é, mas afirmam ser de uma calma insuportável.
Este ensaio foi feito em duas manhãs enquanto São Paulo curtia a ressaca das festas do final do ano e do feriado prolongado. Dirigindo pela Marginal Pinheiros, Rebouças, Amaral Gurgel, Pacaembu, Sumaré, Faria Lima, Dr. Arnaldo, Heitor Penteado, testemunhei a cidade sem viv’alma, sem automóveis circulando, um corpo livre do diabo. Essas fotos são puras, não há retoque de Photoshop ou de qualquer programa de edição de imagem, apenas teve as cores tratadas pelos computadores da Cia de Foto.
Por Fernando Costa Netto
Preso durante o Ano Novo de 2010/2011 em São Paulo, trabalhando na produção da Mostra de Fotografia da cidade, Fernando Costa Netto começou a se sentir em uma película surrealista ao dirigir pelas ruas completamente vazias. Aproveitando uma crise de insônia, passou a sair de casa cedo para registrar o vácuo humano da urbe paulistana criado pelo feriado, em cenas inéditas na sempre caótica cidade. Na entrevista abaixo Netto conta um pouco sobre a experiência.
Como surgiu a ideia de fazer esse ensaio? Quando você percebeu que São Paulo tinha virado uma cidade fantasma?
O trabalho foi feito nos dias 1º, 2 e 3 de janeiro de 2011. Eu estava em São Paulo produzindo a Mostra São Paulo de Fotografia. Já tinha percebido pela manhã que a cidade estava vazia. Quando eu acordava às 9h para vir desenvolver o projeto, via que não tinha nenhum carro. Pensei, seu eu acordar mais cedo, vou encontrar as ruas completamente desertas. Eu estava com uma insônia séria na época, muita coisa na cabeça, fazendo 30 exposições da Mostra. Aí às 5 da manhã eu ainda estava acordado, colocava a roupa e saía sem roteiro. A cidade estava deserta, uma coisa que eu nunca havia visto antes. Comecei a me empolgar e fui para o Centro, para os Jardins. Fiz isso por três dias e nem achei que precisava fazer mais. Nasceu dessa forma, a cidade pelada, o corpo livre do diabo. Ficar em pé na Marginal, parar o carro, dar ré, encostar, não aparecer ninguém. Parece uma cena de ficção científica.
Você fez tudo sozinho?
Não tinha ninguém, minha mulher e filho estavam viajando, não tinha ninguém na rua nesse horário. Não ver nenhum carro, nenhuma pessoa na Aspecuelta era sensacional, era uma situação prazerosa.
Existia algo de prazeroso em trabalhar nessa solidão?
São imagens que eu nunca vi em São Paulo – talvez seja um trabalho inédito sobre a cidade, o que é raro. Fiquei muito empolgado profissionalmente em fazer algo interessante em uma cidade que já foi dechavada visualmente. Sair de casa no Pacaembu, subir a ladeira, virar à esquerda na Dr. Arnaldo, entrar na Paulista, nos Jardins, e não ver ninguém na rua, nenhum carro, é uma coisa bastante estranha. É um prazer solitário.
Como você escolheu os lugares que fotografou?
Fui para as veias principais da cidade, aqueles lugares que geralmente estão entupidos durante a semana. Como a Rua Alagoas, perto da FAAP, é um lugar infernal, carro parado nos dois lados, aluno pra lá e pra cá. Avenida Paulista, Marginal. Às nove da manhã eu já estava voltando para a Vila Madalena e retomando os trabalhos da Mostra, ia tomar um café na Padaria, ia conversando com o Pietro, que estava na ampliação das mais de 300 imagens da Mostra. Eu ia descarregando as fotos que eu fiz pela manhã e a gente ficava comentando, “caraca, que cena incrível”.