“Sabe Davi e Golias? Pensa num Golias dos dias de hoje. Tá ligado o Robocop, aquele prédio ali na Marginal? Imagina um moleque com um estilingue na mão, um saco de bolas de gude, e as vidraças caindo abaixo. Essa era pra ser a capa desse disco, mas na época não de ângulo, a foto não saiu. Louco, né?”. De jaqueta de couro e camisa preta do Santos, Mano Brown introduz “Vida Loka Pt. I”, faixa de Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, de 2002.
Esse é o segundo dia – sexta-feira, 27 – da série de quatro shows que o grupo de rap paulistano faz no SESC Pompeia. 2012 é um ano bom para efemérides do grupo, já que marca os 15 anos de Sobrevivendo no Inferno e os 10 anos de Nada Como Um Dia..., além de carregar a promessa de, talvez, ver o lançamento de um novo disco do grupo, há uma década sem inéditas.
O grupo subiu ao palco da choperia com pouco atraso, sob um ataque de estrobos e uma intro sinistra, com beats colidindo e riscos voando de um lado ao outro, prometendo a volta da fúria negra – além de KL Jay, Ajamu e DJ Will trabalhavam nas bases. Com uma posse numerosa, incluindo Don Pixote, Du Bronks, Thig Smith, Lino Krizz, Helião, Terra Preta e mais uma dúzia de brothers, o Racionais parecia especialmente em casa no SESC, um clima de festa com direito a projeção de imagens do Soul Train e tudo.
O clima de baile – que o também sentiu no primeiro dia de show – ganhou um acento especial quando Edy Rock e Ice Blue emendaram “Qual Mentira Vou Acreditar” com “Estilo Cachorro”, dois dos sons mais balançantes da carreira do Racionais.
Porém, apesar das datas comemoráveis, do suingue, das histórias de Brown (que rememorava períodos negros do passado recente brasileiro, como a inflação galopante dos anos 80 e 90, misturado a lembranças dos bailes da Chic Show), o show nada teve de nostálgico: “Qual Mentira...” foi a música mais antiga apresentada, ao lado de um par de sons de Marvin Gaye cantando por Lino e Terra Preta no final da apresentação.
Praticamente metade do repertório era formado por material pós 2002. Além de faixas que já vazaram por aí – como “Cores e Valores” – rolaram parcerias como “Nova Função”, de Pixote, Brown e a PosseMenteZulu, e “Sou Gangsta”, de André Atilla, Thig e Edy Rock. Brown cantou sua canção à Marighella com todos os presentes no palco perfilados e, claro, com a foto do guerrilheiro projetada ao fundo. Rock reserva a sua solo recém vazada “That’s My Way”, parceria com Seu Jorge (substituído por Lino ao vivo) para o finalzinho, logo antes de “Vida Loka Pt. II”.
O que se vê, afinal, é um grupo sem nenhuma frescura de palco, celebrando com uma multidão de amigos o fato de poder comemorar cada um desses 20 e tantos anos de carreira. Brown não parava de brincar, seja tirando uma com os corintianos eliminados do campeonato paulista ou terminando “Eu Sou 157” antes do final trágico: “E o corre deu certo!”, comemora, criando um outro final, mais abrupto, para o assalto a banco da faixa.
O melhor desse aniversário é perceber que o Racionais sobreviveu com louvor aos efeitos do tempo sobre a própria estrutura do grupo. Meia hora depois do final da apresentação, enquanto o sempre solícito e alto astral KL Jay carregava seu carro para ir embora, um “fã” mala, que quer saber “onde dá pra baixar essas músicas novas?”, provoca: “mas KL Jay, o grupo está dividido, não?”. Kleber ri e pergunta de volta: “você viu mesmo o show?”. E o DJ tem razão – não tem sinal melhor da longa futura vida do Racionais do que um show (ou quatro) como este.
Fotos por Fernando Martins Ferreira