Certos artistas não separam vida e arte. Para esse tipo de criadores, os dois estão fundidos de tal forma que até o exercício das coisas mais banais é vivenciado como experiência artística. E vice-versa: qualquer manifestação assumidamente artística é propulsora e canalizadora do modo de vida. O espaço para tais artistas sempre foi rarefeito, e o grande desafio que se impõe a eles é romper a barreira da pura fruição do entretenimento para se comunicar diretamente com a consciência dos ouvintes. Essa é, ao mesmo tempo, a sina e a glória maior dos Racionais MCs, e o motivo preciso por que eles são uma das últimas bandas a gerar empatia imediata entre fãs que saibam cantar meio verso de uma música sua.
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Junte-se a isso o fato de se estar ocupando, pela primeira vez na história de um grupo de rap brasileiro, o palco de um festival internacional realizado em um dos locais mais identificados com a negação completa desse modo de vida. Junte-se ainda o peso de ser um dos grupos mais importantes na história da música brasileira, e de ter perdido espaço quase por completo no seu território para gêneros mais populares e dançantes como o funk carioca e o pagode. Os Racionais são um grupo destinado a estar eternamente no fio da navalha, tendo que se reconstruir a cada show e disco. É por isso que cada apresentação do grupo é única: o que se põe diante de nós é um mundo em colapso e reconstrução, de uma urgência e uma dor prementes, mas ainda uma celebração, que oscilam entre estimular o pulso vital e negar-lhe absolutamente.
Quem estava preparado para o Racionais no Jockey Club? No Lollapalooza? Uma quantidade moderada de pessoas, se comparada ao público médio da tenda Perry (eletrônica), aguardou por pouco mais de uma hora para tirar a prova. Ao contrário de todas as outras bandas do festival, os Racionais não começaram no horário. O suspense para entrar no palco povoou as mentes com toda sorte de conspirações, alimentadas pela mítica em torno do grupo. Shows cancelados. Perseguição da polícia. Confusões de toda sorte. As teorias mais plausíveis davam conta de um suposto desentendimento a respeito da gravação do show (que, segundo o Multishow, foi proibida pela banda). Nada vem fácil para o Racionais, nunca veio. Não vai ser desta vez, justo ali. A tensão foi levada ao limite, e o grupo só entrou quando a plateia já vaiava o atraso de forma generalizada. Mas o que aconteceu na próxima hora e meia tornou sem sentido qualquer especulação a respeito das razões.
Racionais, todo mundo deveria saber, é muito mais do que Brown, Blue, Rock e Jay. Mas, só para dar o papo reto, eles trouxeram ao palco uma aglomeração imponente de membros da família, que incluíram um Helião revisitado, bem vestido, corte de cabelo moderno e assumindo o vocal de apoio dos Racionais, a turma do Rosana Bronk’s e do Negredo, DJ Cia e vários outros. Todos de preto, todos encenando à perfeição sua parte do script, fosse ela fingir falar ao celular ou fazer coreografias black. Maloqueiro anda em bando, pra começo de conversa. E só tem bando quem tem aliado, e os aliados de Mano Brown são como Malcolm X: já se consideram mortos, e por isso não têm nada a temer. Programado pra morrê nóis é.
E eis que o bando estava muito à vontade, Mano Brown sorridente e interagindo o tempo todo com o público e com a pequena multidão no palco. Os clássicos vieram: “Vida Loka II”, “Negro Drama”, “Eu Sou 157”, “Homem na Estrada”, “Jesus Chorou”, "1 Por Amor, 2 Por Dinheiro". Deve ter sido a primeira vez em qualquer edição do festival que tantos boys (de vila ou quatrocentões), minas, indies, seguranças e funcionários da limpeza curtiram um show juntos e misturados, sem qualquer distinção ou condescendência aparente. Mas foi só quando o jogo estava ganho que o Racionais decidiu mostrar por que esse dia seria ainda mais especial do que todos já sabiam. Como um soco na cara, surgiu nos telões a imagem da carteira de afiliação de Carlos Marighella ao PCB. Ao lado de seu rosto, a foice e o martelo ardiam impiedosamente nas vistas de um festival que representa tudo, menos o comunismo. Uma cena completamente impensável de acontecer em qualquer festival nos EUA.
A projeção seguiu ali durante toda a execução de “Marighella”, mas foi além, como foi além Mano Brown. As rimas da música nova se fundiram em uma exaltação ao “momento do Brasil”, sobre como os estrangeiros estão fascinados pelo país, e como nós temos que estar preparados para aproveitar a maré a nosso favor. Não faltaram elogios à presidenta Dilma Roussef, a Lula e ao senador Eduardo Suplicy, presente na plateia (colado na grade). “Nós só queríamos eleger o Lula, o que mais falta fazer, Blue?”, perguntou um Brown confiante e confortável com sua posição dentro do jogo, em contraste com a imagem conflituosa que muitos vinham fazendo dele nos últimos anos.
Vieram outras imagens (Malcolm X, Bob Marley, Mumia Abu Jamal) e raps novos, do disco que o grupo está preparando (nós contamos 6). A impressão é a de que o Racionais parou de experimentar novos formatos e voltou a fazer o que faz de melhor: bases pesadas, letras rasgantes, rimas intrincadas. Porém, há algo diferente: se o que os fãs mais gostam de ouvir são os sons de ladrão, a banda respondeu voltando com dois pés na política, esbanjando posicionamento e conscientização. O sentido, agora, é de pertencimento, dos excluídos que se tornaram a reserva cultural de um povo, sua epítome e agentes transformadores por definição. É notável, nas letras, a capacidade de captar o momento de afasia (política, social, cultural) vivido por São Paulo e devolver à cidade precisamente o que ela necessita. A questão é saber se os fãs fiéis da banda vão entender o recado, e se o disco novo dos Racionais vai conseguir atingir ouvidos além da tenda eletrônica do Lollapalooza e do leito do rio Pinheiros. A história se apresenta novamente, pronta para ser escrita, e o desafio é tão monumental como sempre. Ao final, só duas possibilidades: ou estaremos diante de derrotados, ou de heróis. Na noite de domingo, pela primeira vez em muito tempo, o clã Racionais deu um sinal contundente de que está pronto para a guerra.
(Foto por Fernando Borges / Terra)