Pensar no ambiente da cidade, como um anseio coletivo, é configurar uma representação das afinidades pactuadas em meio a muitos embates, desejos e projeções individuais de seus moradores, visitantes e de outras configurações sociais, políticas e geográficas existentes no entorno. Falar sobre a cidade sem refletir sobre esses intercâmbios de quereres – diversas vezes conflituosos – é separar os elementos fundamentais de uma composição.
É esta reflexão sobre o ambiente da cidade que vem à tona quando se conhece as idéias iniciais do projeto Quem Faz a Foto?. Produzido, pela primeira vez, em 2009, em Aracaju, pelo (formado, na época, por Alejandro Zambrana, Marcelinho Hora, Daniely Alves, Danilo Bandeira e Zak Moreira – e, hoje, pelos dois primeiros, Arnon Gonçalves e esta fotógrafa-redatora que vos escreve), a iniciativa parecia, à primeira vista, mais um projeto bacana realizado por fotógrafos na periferia de mais uma capital brasileira.
Contudo, quando se convive algum tempo na cidade, é possível perceber a dimensão do debate levantado pelo grupo no contexto do município. Aracaju foi uma cidade projetada politicamente e geograficamente para resolver conflitos de localização da nova capital sergipana. Recebeu em seu espaço urbano famílias tradicionais e personagens de destaque no cenário intelectual e cultural do estado. Os demais moradores eram alocados pelas bordas, seguindo os modelos dos municípios vizinhos fundados no período colonial e na escravatura.
Ainda hoje, Aracaju é uma cidade em que os bairros populares estão localizados nas regiões de saída do município. Um visitante, que não chegue por transporte terrestre, pode passar semanas e até meses (dependendo de seu interesse e localização) sem ter acesso a outras perspectivas realmente diferenciadas do espaço urbano. Estes fragmentos de cidade bem definidos e separados que existem na capital – a exemplo de outras espalhadas pelo mundo – marcam a rotina e as escolhas da população.
Foi nesse contexto de reflexão que nasceu o projeto Quem Faz a Foto?. Zak Moreira conta que o desejo era dialogar com outras abordagens, ouvir relatos de pessoas com trajetos distintos no ambiente urbano e estimular uma troca de anseios que existiam, mas não conviviam, no mesmo espaço municipal. Este querer encontrou eco na zona norte de Aracaju: a gestão do Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) Jael Patricio de Lima queria desenvolver um intercâmbio maior com a comunidade no entorno e a psicóloga Taísa Belém fez a ponte com o coletivo.
Esse elo ajudou na formatação do projeto e no envolvimento de grupos que jamais haviam trabalho juntos. Durante dois meses, os moradores do bairro Cidade Nova, pacientes acompanhados pelo CAPS, psicólogos, funcionários do setor de saúde e os integrantes do coletivo colocaram seus repertórios em um mesmo espaço de aprendizado. Além deles, os videastas Edésio Aragão e Dayse Andrade editaram um documentário que está no site do coletivo e outros parceiros enviaram propostas e incentivos positivos para os debates.
Por meio de intercâmbios com experiências de oficinas populares de Pernambuco, Alejandro Zambrana conseguiu “importar” câmeras plásticas, conhecidas como “plec-plec”, que são vendidas em grandes lojas de variedades pelo custo de R$ 3,99 reais (câmera) e R$ 11,99 (flash). O resto do equipamento usado pelo grupo também foi simplificado: câmeras analógicas básicas e celulares. O objetivo inicial era deixar de lado qualquer dispositivo que intimidasse ou colocasse ainda mais barreiras na aproximação entre os envolvidos no projeto.
“A ideia era não ser o estrangeiro, com seu equipamento fotográfico, vendo o mundo do jeito que ele quer ver, mas, de promover a interação e integração entre os participantes”, comenta Daniely Alves. Wagner Mendonça, que hoje integra o Coletivo Gestor de Atendimento Psicossocial de Aracaju, coloca que a “oficina permitiu trabalhar elementos cognitivos, psíquicos e afetivos importantes, inclusive, numa proposta anárquica e libertária, sem distinção entre profissionais, usuários e comunidade. Um trabalho em que as imagens fizeram parte de uma produção coletiva e colaborativa”.
A experiência foi amplificada por outros relatos. Solange da Silva contou que o curso havia sido importante porque ela “saiu de casa, mexeu com a máquina, viu cores, movimentou-se e aprendeu muitas coisas”. Em meio ao seu depoimento a Zak Moreira, ela confessa que seu sonho era voltar a trabalhar como qualquer outra pessoa. Clida D´Arc contou durante as aulas que, enquanto desenvolvia exercícios de enquadramento e refletia sobre os estudos de captura de imagens em casa, ouviu do próprio filho que “estava ficando mais doida”.
Estes relatos representam como a dinâmica da cidade afeta diferentes grupos e como eles percebem pequenas mudanças em suas rotinas. Para Solange, estar envolvida com o ato fotográfico, durante dois meses, foi reconfigurar uma relação de importância que ela tinha com o trabalho. O papel de Clilda foi o de fazer o próprio filho e os demais integrantes do projeto pensarem sobre os estereótipos associados aos pacientes do setor de saúde mental. Além disso, os dois relatos ponderam sobre o significado da dinâmica urbana na inserção e exclusão social e em como grupos distintos percebem e se posicionam sobre estas questões.
Quem observa as imagens produzidas pelo grupo com mais cuidado percebe referências fortes à contemplação, ao isolamento, ao distanciamento, aos sonhos e uma constante necessidade de aproximação. Esta, quando ocorre, é tão intensa que ultrapassa os limites de foco da lente. Suas fronteiras estão tão juntas que percebemos o observador quase grudado nos fotografados, em um desejo latente de tocar. Para os integrantes estar junto para descobrir ou refazer laços com aquele lugar era mais importante do que priorizar imagens com focos, luzes, planos e composições que atendessem aos manuais de boas maneiras da fotografia.
Respeitar os instintos e experiências sensoriais também se mostrou significativo, de modo que a força de diversas imagens reside do encontro dos aprendizados básicos da técnica com estes outros elementos – e não apenas do uso focado e asséptico das regras fotográficas. Danilo Bandeira chamou atenção para estes detalhes nos momentos de avaliação do projeto e Marcelinho Hora conta que, até hoje, quando revê o material produzido no curso, descobre sutilezas e impressões que não foram discutidas na época. O seu desejo é realizar uma terceira edição do projeto ainda em 2012.
Wagner Mendonça crê que a iniciativa deveria ser periódica e ocorrer em parceria com outros setores sociais. Para ele, o projeto foi importante por trazer uma “fotografia implicada” e uma produção social e artística conectada com o tempo, o espaço e as questões que lhe eram apresentadas. Daniely Alves acredita que o projeto marcou os participantes pela intensidade da transformação pessoal e por sedimentar uma reflexão no grupo. A fotografia em si foi apenas a mediadora, uma desculpa para estar junto e incentivar um debate em uma cidade que tem muito a dialogar.